Nesses dias,
mesmo sem querer, temos esbarrado, aqui e ali, com fragmentos de nossas memórias.
Pensando que possamos estar vivendo o depois, proponho que abramos esses álbuns
de recordação internos, onde ficaram guardados, aleatoriamente, momentos
passados...
Revisitar imagens mentais de situações quase esquecidas pode-nos
pôr em contato com o que restou de mais precioso, pode-nos levar a repensar
costumes e principalmente nos fazer atestar a temporalidade de tudo.
Sim, eu estou
dizendo que existem muitas vidas numa mesma vida. Muitos fins e muitos
recomeços. Seguindo esta mesma linha de
pensamento, acredito que o planeta Terra continuará a existir, refazendo-se
indefinidamente dos maltratos que lhe infligimos, da exploração que lhe impomos
e de nossa arrogância em querer transformá-lo, pedacinho por pedacinho, com boa ou
má intenção, por nos julgarmos superiores à Natureza, como se não fôssemos uma
ínfima parte dela.
Sim, eu sei
que o ser humano traz, em sua constituição, pulsões de criação e de destruição,
vida e morte lutando continuamente, transformadas pela necessidade de participar
de grupos comunitários, respeitando acordos entre Bem e Mal, a que denominamos
Éticas. Sei que, por mais que tudo o que nos está nos acontecendo neste momento
seja terrível, a maioria de nós
sobreviverá, alguns talvez modifiquem sua rota espontaneamente, muitos terão
que se ajustar a novos modelos, mas que dificilmente a revolução de costumes
virá de uma hora para outra, tão logo seja banido este vírus específico.
Ontem, ouvi
que não é verdade que o mundo já tenha sido diferente. Que o quadro que descrevi, no
texto anterior, tem, como antiquíssima causa, a miséria de uns, ignorada pela
comodidade de muitos, explorada pela ganância de outros tantos. Lembrou-me, uma
leitora, recordações de minha infância, que compartilhei em outros escritos,
onde descrevo as valas negras da cidade onde nasci, servindo de quintal para
crianças seminuas, misturadas a porcos, cachorros esquálidos, cercados por
urubus ciscando carniça... Aliás, foi assim que conheci a palavra carniça: como
parte da paisagem que via, de dentro do carro, pela janela que tinha que ser
mantida fechada, apesar do calor (ainda não havia ar condicionado) para que não
sentíssemos o cheiro insuportável vindo do exterior, onde era comum avistarmos
animais mortos, expostos sobre a terra. Estas cenas amplificadas, ladeavam a
rodovia que ligava a capital do Estado à cidade Imperial, com a acumulação de
muitas centenas de barracos, colados uns aos outros, moradias pra lá de
precárias de uma população inteira desguarnecida de cuidados. Era uma travessia
impressionante, que se precisava fazer para ir e voltar, a cada passeio de fim
de semana, e que me fazia imaginar como viviam aquelas pessoas, respirando aquele
ar pesado e quente, acrescido do cheiro
de óleo queimado dos automóveis e caminhões, com o Mangue ao fundo, como se
fosse um horizonte sombrio...
Mas, ao mesmo tempo, havia pela mesma estrada, os vendedores de caranguejos segurando réstias daqueles bichos vivos, escuros e
avermelhados de muitas pernas, como aranhas gigantes e cascudas, oferecendo-os
como matéria para o prazer profano de experimentar o fruto dos manguezais,
alimento pra lá de primitivo. Aprendi, assim, a observar os caranguejos e ver
como seus olhos giram, projetando-se fora do casco, como periscópios e como esses
animais são capazes de andar pra frente, pra trás e pra ambos os lados. Grandes
mestres, saídos de dentro da terra pulsante!
Depois,
quando retiraram as favelas da Baixada Fluminense, fizeram-no com tal
desrespeito à cultura desenvolvida naquelas comunidades, que não levaram em
conta a distância dos centros urbanos onde toda aquela gente trabalhava, nem
consideraram suas necessidades, ligadas ao ambiente ao qual se haviam adaptado,
julgando, talvez, que bastaria dar-lhes casas de tijolos, vasos sanitários e
tanques para resolver seu problema de insalubridade. Talvez fosse, no fundo,
para resolver nosso problema de insalubridade psíquica, por termos que nos
confrontar com tamanha e gritante desigualdade, reprimindo a culpa e a
consternação! Todos sabemos no que deu a iniciativa de transferência imposta àqueles
moradores, que nem mesmo serviu para dar notoriedade aos políticos que a
promoveram. Muito pelo contrário, eles seguem sendo condenados pela opinião pública, até hoje. E a
Cidade de Deus, por ironia, erguida como solução, persiste revelando e
propagando a violência existente desde a origem de sua criação.
Então -
vocês podem estar pensando - concordo com quem me diz que o mundo nunca foi
diferente? É falsa, então, minha afirmação de que o mundo, como eu o conheci,
já acabou, faz tempo? Este estado de miséria humana sempre existiu e prosseguirá
indefinidamente?
Vivi muitas
vidas. Estou aqui há tempo suficiente para ter tido a sorte de conviver em
muitos entremundos, espaços de mais e menos conforto, luxo até, pobreza também.
E o que que é comum a todos eles, que me faz estranhar tão profundamente e
denunciar tão veementemente posicionamentos egoístas, exploradores e de
profundo desprezo de quem não quer ver e não quer sentir o sofrimento alheio? O espaço interseção, que identifico naqueles
mundos de outrora, é o da existência de algum resquício de humanidade, construída
a duras penas, por sofrimentos de gerações anteriores, que ainda se mantinha, e
que vem sendo cada vez mais rapidamente perdido. Penso que nós, os mais bem
aquinhoados por termos mais acesso à escolaridade superior, a cuidados de
saúde, a mais horas de descanso, a muito melhor alimentação, a conhecimentos
mais expansivos advindos de leituras, viagens, privilegiados até mesmo por
maior tempo livre de trabalho pesado, que nos permite participar de práticas
espirituais - portais de transcendência
capazes de desenvolver compaixão - somos os que deveriam ter cuidado em
promover não progresso, mas desenvolvimento. Mas a verdade é que não o fizemos.
Como continuamos não cuidando disso, até agora.
A
dificuldade em cumprir este tempo de quarentena escancara nossa onipotência e traz o pavor de olhar nossa imagem, no gigantesco espelho em que se transformou o dia a dia. Ninguém
quer se sentir tão frágil, como de fato é. A morte, trazida pelo inimigo invisível,
de que não conseguimos ainda conhecer a tática e as artimanhas, escancara sua boca esfomeada, pronta a devorar qualquer um. Há quem brinque de
roleta russa, negando poder ocupar o lugar de vítima fatal. Há quem deprima,
porque não sabe lidar com as necessidades básicas e sinta falta do que é
acessório, como se fosse vital: o cinema, o cabelereiro, o exercício
acompanhado pelo treinador pessoal, o chopp com os amigos na praia, a ida ao
shopping, as festas, as reuniões presenciais de trabalho, as viagens, e vai por
aí... Alguém escreveu que é muito revelador se falar em quebra da economia, num
momento em que as compras estão restritas ao que é necessário. E nem é só
o essencial que está sendo consumido. Os sortudos, continuam comprando no
supermercado ou mandando vir dos açougues ou dos delíveres muito mais do que
aquilo de que realmente precisam. Mimam-se, para esquecer que não podem
trabalhar fora de casa, para esquecer que as crianças têm insistentes
reivindicações não mais delegáveis a outros (babás, professores, terapeutas,
empregados, avós), para não lembrar que são solitários, que não têm recursos
internos suficientes para lidar consigo mesmos. Sim,
é humano que queiramos satisfazer nossos pequenos desejos, ainda permitidos. Mas
quando virá a preparação para o outro mundo que já está aí, se impondo faz
tempo, desde que o anterior foi-se esfacelando e sendo remendado, até que se
decompôs e nos deixou, como estamos, de mãos vazias?
De meu
conjunto de recordações, escolho preservar o modelo das feiras livres de minha
infância e adolescência, perfumadas pelos cheiros múltiplos dos
legumes e das verduras puras, das frutas frescas, das flores exuberantes. Quero
de volta a potência dos peixes frescos, que a gente aprendia a reconhecer pelos
olhos e pelas guelras; dos ovos de gemas amarelo-ouro, doados por galinhas que
comem milho e mato e pastam soltas, catando minhocas, ciscando o quintal e
deixando sua contribuição para o adubo da terra, convocadas, desde a madrugada,
pelo canto do galo... Por mim, quero de volta as horas do dia de tal forma
plenas, que continham momentos que pareciam custar muito a passar e seguiam,
aguardando as outras, céleres, que se esvaíam em pequenas alegrias! Quero as
compras planejadas, sonhadas e de tal forma desejadas, que cada roupa, cada
livro, cada presente, cada brinquedo era um bem precioso a zelar, recheado por
muitos prazeres secretos a serem despertados em cada minuto de uso e de convívio.
Quero as férias com gosto de entusiasmo e tempo livre, quer fossem passadas em
casa, quer se enriquecessem em pequenas viagens cuidadosamente idealizadas e que sempre traziam muitas experiências excitantes, as melhores mestras dos saberes e dos
sabores, dos encantamentos, das inspirações. Quero os encontros, marcados ou
súbitos, iniciados nos olhares que se cruzam e se acendem, chegando ao abraço e
se eternizando nas conversas boas, aquelas de que nunca mais se pode esquecer.
Quero a água limpa, que é de todos, que precisa fluir e matar a sede, lavar e
purificar tanto o corpo quanto a alma, trazendo descanso e paz, que garante
para sempre, a cada um, a serenidade do sono de criança, de que já desfrutamos, um dia.
Estou, sim,
plasmando, nesse momento, o mundo do qual pretendo continuar participando ainda
um pouco mais. Se chegamos até aqui, cada um de nós, trazendo no coração seus
álbuns de recordações valiosas, boas e más, precisamos honrar essa oportunidade
de virmos a ser, mais que sobreviventes, autotransformadores, cocriadores de
uma nova realidade.
Por enquanto, deixemos abertos nossos relicários...
Por enquanto, deixemos abertos nossos relicários...
Nada será como antes!Sinto como se fossemos personagens de um filme de ficção! O futuro chegou! É agora!
ResponderExcluirQuerendo ou não, estamoa vivendo cada momento e, sim, este futuro nosso presente.
ExcluirLendo você e vendo a todo instante, aqui ao meu lado, pendurados na porta do guarda-roupa, os bonecos de pano que você me deu. Eles me acompanham sempre é não me farão esquecer nunca das vivências na mata, quando nos conhecemos.Nem do cuidado amoroso que você teve comigo quando fui à rodoviária te buscar doente mas ansiosa por sua chegada. Tenho tantas outras boas lembranças de nós. E guardo todas como honrarias que estão sendo bordadas na composição do novo tempo desse novo mundo que haveremos de testemunhar. Carinho imenso, Inez!
ResponderExcluirSim, Cláudia, nosso encontro guarda sincronicidades preciosas! Fico contente que você se lembre delas. Muito grata.
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