sexta-feira, 14 de julho de 2023

 

Por bem amar

 

O amor encontrou minha casa arrombada e destruída.

Passara por aqui a paixão. Chegara repentinamente, iluminando com tanta intensidade o espaço, que foi cegando os olhos de tudo.

Preencheu cada cantinho irreverentemente, expulsando hesitações, temores, cuidados e ensaios.

Nada me parecia faltar, desde então. E o próprio desejo já era satisfação, sem sequer ter sido expresso.

A beleza que a paixão produzia era tão impregnante, que eu podia admirá-la, profundamente dentro e infinitamente fora, a um só tempo.

Durou, até. Mas, num súbito, extinguiu-se e, atrás de seu rastro, restou bem pouco.

 

Depois, reuni forças para acender o fogo.

Comecei a catar os cacos da louça quebrada, as páginas dos escritos rasgados, evitando olhar meu rosto cansado, no espelho espatifado.

Foi, então, que o amor entrou. Não por convite. Foi o abandono que o chamou.

Quase em silêncio, pisando de mansinho, começou a tecer seu manto: um quase imperceptível afago, um olhar mais demorado, uma flor exposta num vidro vazio, uma semente a germinar.

E foi-se deixando ficar, mesmo quando parecia não estar mais aqui.

Integrou-se no leito que acolhe, nas dobras da roupa que aquece, na cadeira que apoia e na água que escorre, lava o corpo e mata a sede.

Hoje, vive no silêncio e no canto de pássaros, mesmo quando estes não vêm.

Colore o final da tarde e faz girar as pás dos moinhos distantes, que o espalham, displicentemente, mundo afora...

Diariamente o amor abre e fecha a porta, azeitando as dobradiças para que não ranjam e eu não me assuste.

Acolhe minhas inquietações, com placidez, porque sabe que vão passar.

Quando veio, o amor aceitou que eu não tivesse nada. Trouxe as mãos vazias e me alimentou de sonhos macios.

                                                                                     M.I.E.S.

                                                                                     01.11.19