Re-encontrando
Gregório
Desliguei o
celular, ainda sem absorver bem a notícia que Augusto Pessoa me passava, em uma
mensagem breve, mas visivelmente emocionada, onde dizia:
- Gregório
foi contar histórias no Céu!
Logo a
seguir, pareceu-me ouvir a voz de Fernando Lébeis, repetindo o mesmo estribilho
com que me recebia toda semana, quando eu chegava na portaria de seu prédio,
onde ia aprender com ele sobre as culturas
brasileiras. Só que, agora, era ao Gregório que ele estava chamando, lá, de
muito mais alto:
- Sobe,
Gregório!
E pude entrevê-los,
momentos depois, se abraçando, em um encontro muito amoroso e sentando-se, lado
a lado, para ouvir Gal Costa, que chegara ali poucos dias antes e
recebia Gregório cantando de Força Estranha, justamente os versos que
homenageiam “o menino correndo” (certamente com a pipa na mão), fazendo
a Travessia e já sabendo que “a vida é amiga da arte”… Pude vê-la
prosseguir, depois de piscar repetidas e
marotamente, do jeitinho que ele gostava:
“Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista… O tempo
não para e, no entanto, ele não envelhece… Aquele que conhece o jogo, o fogo
das coisas que são, é o sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão!”
Que beleza
de recepção! Certamente a inauguração de uma nova série de saraus gregorianos,
estava acontecendo naquele momento…
Retornando,
ainda que involuntariamente, ao lugar onde eu estava, e, talvez para não me
sentir tão só, dispus-me a abrir a porta de meu coração às lembranças…
Foi Fernando
quem trouxe Gregório para minha história. Primeiro, falou das pipas que este
produzia. Convidou-me para ir com ele a uma exposição delas, mas acabou desistindo,
à última hora, frustrando meu entusiamo, porque iniciou um vendaval, naquela
tarde de outuno e ele não achou prudente nos arriscarmos… Só aceitei aquela precaução exagerada, porque
sabia que Fernando não gostava de vento. Mesmo assim, me estranhava, porque
pipas e vento são conceitos amalgamados, na minha parca compreensão dos
mistérios dos voos…
Mas as pipas
de Gregório, feitas de tecidos, rendas, fitas, linhas, botões e tanta coisa mais
pra além de bonita, eram quadros flutuantes, logo percebi… Elas não voam; fazem
voar quem as contempla. Cheguei a ser presenteada por ele, com duas delas, que
guardei com imenso carinho no Centro Cultural e depois no Sítio Retiro, aquele
lugar tão especial, em Bom Jardim, que nem Gregório, nem Fernando jamais
chegaram a visitar. Bem que tentei seduzi-los com o café que produzia ali. Até
porque ambos eram apreciadores de bom café. E de broinhas. Eles me ensinaram,
no entanto, que esses são produtos que podem transformar o mais refinado bistrô
urbano em um cantinho de cozinha da roça… Basta a reverência e o pausar das
horas. Sabedoria preciosa!
Era o tempo
do Centro Cultural Viva, ali, na rua Goethe, quando tudo isso ia acontecendo. E
eu digo que Gregório se agregou ao grupo, como se fosse mesmo uma lição
de cartilha, aquelas formuladas pra fazer criança aprender o treme-treme
rascante do sotaque, que ele gostava de destacar, em suas narrativas. Ah! Seu
jeito de contar histórias tão peculiar, único e perene! Posso ainda ouvir sua
voz ir arranhando forte e docemente cada palavra, dando-lhe entonação lenta, para ir formando, através de cada escuta, o
sentido particular.
Mais
adiante, na noite, em que nos reunimos para encerrar o trabalho do nosso Centro
Cultural, em Botafogo, Gregório estava conosco, sentado ao redor da mesa onde encarávamos,
fraterna e solenemente, o início do luto pelo final de um projeto que fora
maravilhoso e que nos levara a preencher, através da alegria da arte, em noites
memoráveis, o pouco tempo de vida que Fernando ainda tinha a usufruir. Naquele
momento de tristeza inadiável, Gregório assumiu naturalmente o lugar do sábio
ancião, aquele que garante o tom de plácida serenidade às perdas inevitáveis.
Juntos, eu e
ele chegamos a fazer uma oficina do livro “Mulheres que correm com os lobos”.
Era sobre a história “Mulher Esqueleto” e Gregório nos mostrou como produzir o
esqueleto das pipas, e nos falou sobre a necessidade da expressão do desejo e
do pedido espontâneo de ajuda.
- Pede!
Pede! Pede! – ele ensinava, com a mais autêntica simplicidade que pode haver.
Depois,
Fernando partiu. Um hiato se fez em tudo que cercava o movimento de criar vida,
para que fosse possível metabolizar tamanha perda! Naquele momento, soube
depois, narrada a mim, quase como
história de amor/terror, pelo próprio Gregório, ele precisou carregar nos
braços o corpo do amigo tão amado, da saída de sua casa, até o carro fúnebre. Como
acontecera com Álvaro Mutis - grande
romancista colombiano e também homem de muitos ofícios, entre eles o de locutor
de rádio, amigo especial de Gabriel Garcia Marquez, (que registrou esse detalhe
em “Eu não vim fazer discurso”) - Gregório desceu o corpo inerte de Fernando,
em posição vertical, pelo elevador, num último abraço que, segundo me
confessou, ficou marcado em seu peito como uma couraça dolorosa.
Na
metabolização daquela perda, tão difícil para todos nós, dali pra frente,
Gregório ficou foi se tornando um amigo mais e mais especial. Deste lugar,
chegou-me seu convite e sua indicação para que eu fosse ao Acre – sua terra
natal – por duas vezes, participar de projetos para educadores e contadores de
história. Recebida com imenso reverência pelos corações escancarados daquele
povo maravilhoso, pude conhecer e admirar seu trabalho como Presidente da Fundação Estadual de Cultura, participar de inúmeros eventos ligados
às culturas indígenas, fazer o lançamento de meu livro “Vasos Sagrados” em
noite memorável na Biblioteca Pública, a menina-dos-olhos da Fundação, visitar o trabalho dos professores
indígenas, as Casas de Leitura, os Museus, além dos Parques Florestais… Uma parte
preciosa do mundo particular de Francisco Gregório Filho, que ele sempre compartilhava
tão generosamente. Ô sorte, a minha!
Uma manhã,
em Rio Branco, fui convidada a acompanhá-lo ao programa da Rádio Difusora
de Rio Branco, que ele capitaneava. Que delícia! Devo confessar que eu julguei
que poderia ter me tornado uma radialista, dali pra frente, tão empolgada me
senti! E agora me ecoa, nos ouvidos, a música que ele escolheu especialmente
para a ocasião, tirada do LP Circo Místico : “Na Carreira”:
“Hora de ir embora
Quando o corpo quer ficar
Toda alma de artista quer partir
Arte de deixar algum lugar
Quando não se tem pra onde ir…”
Hoje percebo
que, naquele momento, Gregório estava me ensinando a lição budista da
transitoriedade, extraída por Chico Buarque e Edu Lobo do conhecimento da alma
brasileira mais pura e profunda. Não por
acaso, aquela manhã fora iniciada com o prazer de saborearmos mingau de banana
verde, na barraquinha do mercado livre de Rio Branco. Luxo puro, experiência
inigualável!
Graças a Gregório,
em Rio Branco, aprendi sobre a potência superior das águas, caminhando pelos
lugares onde ele viveu, onde cresceu, onde encontrou seus parceiros. Ali, ele me
falou das sementes, das árvores gigantescas, da dignidade e do poder
inquebrantável de homens inesquecíveis como Chico Mendes.
Algumas
vezes visitei suas oficinas, no Paço Imperial, na biblioteca do Museu do Folclore, sendo sempre recebida com carinho
e, talvez, com mais distinção do que eu merecia. Porque Gregório, como verdadeiro
mestre e cavalheiro, sempre soube estimular o valor e o protagonismo de cada um
de seus discípulos.
Depois, a
vida nos jogou pra lá e pra cá…
Eventualmente
eu o encontrava, na Cobal, com Lúcia, sua esposa. Brindávamos com um gole de boa
cerveja, nos momentos matinais dos sábados, no intervalo de minhas compras, jogando
ao acaso um papo leve e nutritivo. Era bom, alimentava e sempre me ajudava a
seguir adiante, com mais otimismo.
Outras
vezes, a casa da dona Antonia - a vizinha da rua Goethe, que fabricava pães
poeticamente e que sempre reuniu os amigos do Gregório e dos escritos - me trouxe
acolhimento, oferecendo-me o prazer de desfrutar dos cuidados, das recitações,
das músicas, que brotavam como agradecimento a ele.
Em outros
momentos, o Museu do Telefone, vizinho de minha casa, nos ofereceu mesa, café e
ambiência para costurarmos conversas sem compromisso, mas com muito
comprometimento afetivo. E nós, sempre voltávamos a falar em Fernando, em
projetos, em livros e possíveis parcerias. Exercíamos o delírio como o
Fernando, um incentivador desses estados d’alma, certamente nomearia…
Pouco antes
de eu partir para Portugal, reuni na rua Goethe, na casa de meu filho, os
parceiros do Educação Viva – o projeto do Centro Cultural, de que Gregório participara.
Nesse dia, ele chegou qual Moisés, salvo de águas torrenciais, encharcado por um
temporal inesperado e, mesmo assim, atencioso, como sempre. Aquele encontro era
uma tentativa de reviver o companheirismo antigo, tão necessário num momento
difícil de nosso país e nós nos empenhamos nessa intenção, até aonde ainda era
possível ir.
Não voltamos
a nos encontrar presencialmente. Há pelo menos dois anos e meio vinha
acompanhando suas criações pela Internet. Com admiração, mas, confesso, com certa
distância regulamentar, que, infelizmente, a tecnologia ainda me passa. E foi
assim, até a última apresentação que ele postou. E, repente, ele não está mais aqui.
A notícia me
surpreendeu lá no Retiro, em Bom Jardim. Sozinha, desfiei para mim mesma essas
lembranças, querendo encontrar um sentido, um lugar de consolo. Não o há. Nos dias seguintes, andando pelas ruas de
Nova Friburgo, tão suas queridas, e sentada no antigo Grão Café, espaço de
delícias a que ele me apresentou, parecia-me sentir sua invisível presença.
Gregório se
foi e um até breve é o que de melhor posso desejar que tudo isso represente..
Volto-me,
então, ao que ele legou. Seu testamento foi formulado em cada dia de sua vida e
ele deixou uma riqueza de patrimônio imaterial, impossível de avaliar. Ele
ensinou, estimulou, corrigiu, formou, apontou caminhos e abençoou, de norte ao
sul do Brasil, uma quantidade incomensurável de contadores de histórias, de
educadores, atores e produtores culturais.
Agora,
liberto dessa missão, que cumpriu abnegada e magistralmente, resta-nos honrar
tudo o que dele recebemos. Nesta última semana, mais que nunca, o amor imenso a
ele tem sido contado e cantado em verso e prosa nas redes sociais, nos
encontros, nos escritos, nas homenagens.
Retomando Garcia Marquez, no mesmo livro (“Eu não vim fazer um discurso”), ele se refere
a Julio Cortázar nomeando-o como “O argentino que se fez amar pelo mundo”. Como
argumentação Garcia Marquez diz:
“Os
ídolos infundem respeito, admiração, carinho e, claro, grandes invejas. ….
Cortázar inspirava todos esses sentimentos, mas além do mais inspirava outro
menos frequente: a devoção. Foi, talvez sem ter se proposto, o [argentino] que
se fez amar por todo mundo.”
E conclui,
me dando o mote para celebrar Gregório:
“Preferi
continuar pensando nele como sem dúvida queria, com o júbilo imenso de que
tenha existido, com a alegria entranhável de tê-lo conhecido e a gratidão por [ele]
ter deixado , para o mundo, uma obra talvez inconclusa, mas tão bela e
indestrutível como a sua lembrança.”
E,
parafraseando Gregório, talvez ele nos dissesse :
- Firmeza!
De minha
parte, não cansarei de repetir:
- Viva! Gregório
Vive!
M.I.E.S
– 17/11/2022