domingo, 5 de setembro de 2021

EVOCAÇÃO

 

EVOCAÇÂO

Os povos indígenas, legítimos donos dessa terra, estão, há duas semanas, acampados em Brasília, à espera de que os senhores das leis decidam se vão, ou não vão, respeitar seu direito inalienável de viver nas regiões das quais são os únicos guardiões verdadeiros e capazes. Não há nenhum respeito pelo seu sacrifício em estar ali, expostas à enorme distância de seus territórios, à mercê de toda sorte de riscos, naquela cidade  inóspita. Os senhores das leis adiam a votação arbitrária a seu bel prazer, esperando, certamente, esvaziar a mobilização indígena.

600 mil pessoas já morreram de Covid-19 e muitas das que se infectaram e sobreviveram estão ainda sem solução para as sequelas gravíssimas que a doença lhes deixou. Os senhores das leis discutem, dia após dia, as barbaridades que vieram (e seguem) sendo executadas pelo governo federal e seus asseclas, mesmo que saibamos que nada poderá reverter o genocídio que vem sendo praticado por eles. Gasta-se tempo precioso e rios de dinheiro para julgar o que já seria condenável por princípio. E há quem se delicie com esse circo de horrores.

O desemprego, a fome, a miséria alastra-se pelo país, trazendo o prenúncio de um desespero que logo se abaterá sobre todos os que ainda mantêm um mínimo de dignidade. Por outro lado, enquanto o Brasil agoniza, muitos se alienam, vivendo como se tudo isso fosse natural ou inevitável.

Mas depois de amanhã deverá ser celebrado o Dia da Pátria. A criminalidade legalizada, a quem foi entregue o poder, pretende dar salvas sobre essa terra saqueada, ensanguentada, ultrajada, estuprada por mais de cinco séculos e golpeada de morte, agora. Querem pisotear compassada e solenemente, com coturnos militares polidos vigorosamente, a dor e o desalento do povo. Contam com a adesão de um fanatismo cego, que hipnotiza e imbeciliza tantos.

Nesse momento, há grande temor espalhado no ar, uma sensação de véspera, que já se urgencia há 7 anos. E existe, também, o desejo de vingar nossos mortos. Trucidados, envenenados, soterrados pela ganância, eles foram se tornando sombras, que nesse momento ganham força pela recordação, que os transforma em presença.

A Pátria tal como ensinada em nossa infância passada, abrigo de vida e criadora de caráteres dignos, era uma fantasia, percebemos, por fim. Por isso, será preciso recriar o significado desse termo, talvez transformá-lo. Necessário até, provavelmente, inventar uma nova bandeira,  inaugurar um tempo de novas utopias. No entanto, para que isso possa acontecer, precisamos olhar pra trás. Sim, a nosso frente estão os bárbaros, celebrando a morte com armas e mãos ensanguentadas. Mas, atrás de nós, estão nossos antepassados, nos ensinando o caminho de um poder infindo, que nasce do necessário reconhecimento de quem somos.

Irremediavelmente criados com almas miscigenadas, seguiremos errantes e desvalidos,  enquanto  não assumirmos o orgulho de sermos uma nação de seres humanos com um passado de vínculos profundos, gerados pela necessidade premente, que nos fez sobreviver à escravização, à submissão, a toda sorte de humilhações. Nossa herança mais remota é de um comprometimento profundo com a Vida e é ele que nos trouxe até aqui.

Muito mais do que um sentimento de pátria, é o direito de sermos livres e íntegros o que a memória mais remota da passagem dessa data precisa despertar em nós. Mas a autêntica liberdade é a de não sermos mais conduzidos como rebanho, nem mesmo instigados por provocações planejadas. Para podermos recuar, quando preciso, e surpreender, por trás, os inimigos que precisamos vencer.

Que venham os espíritos das grandes mães e pais indígenas, africanas e africanos, todos e todas que nos legaram seus colos, suas rezas, seus unguentos, seus conselhos, sua sabedoria, abrindo urgentemente, nesse momento sombrio, um caminho de percepção clara, que nos leve a alcançar a resolução desse enfrentamento!

                                                                                                               M.I.E.S. 

05/09/2021