EVOCAÇÂO
Os povos indígenas, legítimos donos dessa terra, estão, há duas semanas,
acampados em Brasília, à espera de que os senhores das leis decidam se vão, ou
não vão, respeitar seu direito inalienável de viver nas regiões das quais são
os únicos guardiões verdadeiros e capazes. Não há nenhum respeito pelo seu
sacrifício em estar ali, expostas à enorme distância de seus territórios, à mercê
de toda sorte de riscos, naquela cidade inóspita.
Os senhores das leis adiam a votação arbitrária a seu bel prazer, esperando,
certamente, esvaziar a mobilização indígena.
600 mil pessoas já morreram de Covid-19 e muitas das que se infectaram e
sobreviveram estão ainda sem solução para as sequelas gravíssimas que a doença
lhes deixou. Os senhores das leis discutem, dia após dia, as barbaridades que
vieram (e seguem) sendo executadas pelo governo federal e seus asseclas, mesmo
que saibamos que nada poderá reverter o genocídio que vem sendo praticado por
eles. Gasta-se tempo precioso e rios de dinheiro para julgar o que já seria
condenável por princípio. E há quem se delicie com esse circo de horrores.
O desemprego, a fome, a miséria alastra-se pelo país, trazendo o prenúncio
de um desespero que logo se abaterá sobre todos os que ainda mantêm um mínimo
de dignidade. Por outro lado, enquanto o Brasil agoniza, muitos se alienam,
vivendo como se tudo isso fosse natural ou inevitável.
Mas depois de amanhã deverá ser celebrado o Dia da Pátria. A criminalidade legalizada,
a quem foi entregue o poder, pretende dar salvas sobre essa terra saqueada,
ensanguentada, ultrajada, estuprada por mais de cinco séculos e golpeada de
morte, agora. Querem pisotear compassada e solenemente, com coturnos militares
polidos vigorosamente, a dor e o desalento do povo. Contam com a adesão de um
fanatismo cego, que hipnotiza e imbeciliza tantos.
Nesse momento, há grande temor espalhado no ar, uma sensação de véspera,
que já se urgencia há 7 anos. E existe, também, o desejo de vingar nossos
mortos. Trucidados, envenenados, soterrados pela ganância, eles foram se
tornando sombras, que nesse momento ganham força pela recordação, que os
transforma em presença.
A Pátria tal como ensinada em nossa infância passada, abrigo de vida e
criadora de caráteres dignos, era uma fantasia, percebemos, por fim. Por isso,
será preciso recriar o significado desse termo, talvez transformá-lo.
Necessário até, provavelmente, inventar uma nova bandeira, inaugurar um tempo de novas utopias. No
entanto, para que isso possa acontecer, precisamos olhar pra trás. Sim, a nosso
frente estão os bárbaros, celebrando a morte com armas e mãos ensanguentadas.
Mas, atrás de nós, estão nossos antepassados, nos ensinando o caminho de um
poder infindo, que nasce do necessário reconhecimento de quem somos.
Irremediavelmente criados com almas miscigenadas, seguiremos errantes e
desvalidos, enquanto não assumirmos o orgulho de sermos uma nação de
seres humanos com um passado de vínculos profundos, gerados pela necessidade
premente, que nos fez sobreviver à escravização, à submissão, a toda sorte de
humilhações. Nossa herança mais remota é de um comprometimento profundo com a Vida
e é ele que nos trouxe até aqui.
Muito mais do que um sentimento de pátria, é o direito de sermos livres e íntegros o que a
memória mais remota da passagem dessa data precisa despertar em nós. Mas a autêntica liberdade é a de não sermos mais conduzidos como rebanho, nem mesmo instigados por provocações planejadas. Para podermos
recuar, quando preciso, e surpreender, por trás, os inimigos que precisamos vencer.
Que venham os espíritos das grandes mães e pais indígenas, africanas e
africanos, todos e todas que nos legaram seus colos, suas rezas, seus unguentos,
seus conselhos, sua sabedoria, abrindo urgentemente, nesse momento sombrio, um
caminho de percepção clara, que nos leve a alcançar a resolução desse
enfrentamento!
M.I.E.S.
05/09/2021