terça-feira, 15 de agosto de 2017

Por não ver


Nunca esquecerei aquele olhar. Gélido.

O que a mulher ia dizendo à filha, palavras aparentemente corretas, quase doces, como conselhos, saíam de lábios contornados com o batom da cor adequada para o momento, combinando com o penteado certo, um vestuário sóbrio e elegante e com sua postura, ereta, mas que não chegava a denunciar arrogância. 
Falávamos do comportamento de sua filha, uma adolescente rebelde. Uma moça afetuosa, sem empenho nos estudos e nenhum comprometimento com a própria segurança . 
Nosso encontro, previamente agendado, aconteceu em cadeiras de ferro, num terraço que se abria para o lindo jardim da escola, numa manhã azul de primavera. Impossível esquecer. Tudo era vida a nosso redor, combinando bem com a crise de crescimento da jovem. Mas o olhar que a mãe lhe lançava era mortífero e só pôde ser percebido, porque escapava ao controle. Provavelmente, as regras de etiqueta, ensinadas pela Socila, às mulheres de sua época, não incluíam a educação do olhar. 

Mãos e olhares  denunciam.  Há que prestar-lhes toda a atenção possível.

Acho que não correrei o risco de esquecer o que está acontecendo a minha volta, hoje. A indignação não me permitirá puxar a cortina sobre o cenário de filme de terror que estamos vivendo.
Venho moderando meu tom, na escrita e rareando as conversas, a viva voz. Busco incessantemente uma forma de não causar mais estragos, em meio a tanta destruição a que assisto, impotente. No entanto, não posso controlar meu sentimento de espanto, frente a  hipocrisia e  cinismo tão afrontantes. 

Aquela mulher, que me congelou a alma, tempos passados, recusando-se a compreender que era de afeto e zelo a carência de sua filha, embora lhe fossem dadas todas as regalias que o dinheiro pode comprar, vem vivenciando, ano após ano, calvário sobre calvário, numa família repleta de dependentes químicos, disputas por heranças e desamores. Não sei o quanto ela tem aprendido com tudo isso, nem se, em algum momento, seu olhar se humanizou. Temo que não.

Da mesma forma, tantos e tantos que, nesse momento, defendem seus direitos individuais (falando dos bens materiais e de uma pretensa segurança de que não podem abrir mão), passando por cima, sem sequer olhar, de multidões desassistidas, de corpos trucidados, de encarceramentos injustos, de retirada de direitos essenciais dos cidadãos comuns, talvez nunca mudem os gestos de descaso, que lhes garantem uma distância protetora.

Se aquela mãe tivesse, exasperada, sacudido sua filha, na minha frente, eu teria podido interferir e acudir, a ambas, para que, enfim - quem sabe? - buscassem se conhecer, de fato. Mas era impossível acusá-la de descaso apenas por um olhar, que eu captei por segundos. E, dessa forma, indefesa, deixei-me ferir também.

No Brasil de hoje, a violência se derrama em atos, mas também pela ausência deles. Apenas comentar, com lamentos polidos, a desgraça de nossos irmãos e a destruição do país e do  povo é uma forma de vivermos, quase como se fora ficção, a realidade mais torpe em que estamos mergulhados.

Fingir não ver também é violência. Talvez a mais cruel de todas.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A Vida não é um jogo de Batalha Naval

Descobri hoje, assistindo ao filme Dunquerque, que o prazer que eu tinha em jogar Batalha Naval na adolescência e até depois de adulta, era porque não me ocorrera pensar que, dentro das embarcações inimigas há seres humanos. Mais uma coisa (das tantas!) que perdeu, irreversivelmente, a graça para mim. Terei que reinventar o mesmo desafio espacial do jogo (tão bom!), usando outro motivo, que não seja guerra.

Dias passados, ouvi falar desse filme em casa e fiquei curiosa. Depois, li um texto, assinado por Ricardo Rangel, que cita uma frase de um célebre discurso de Churchill “Não se vencem guerras com retiradas”. E por aí, seguindo um encadeamento de pensamento confuso, o jornalista descamba para chegar a uma crítica absurda aos governos petistas, dizendo que eles ideologizaram o ensino. Lamentável! Não sei o quanto ele acompanha o processo de Educação no Brasil, mas, se quer defender a importância deste – no que teria meu total apoio – precisa se basear em pesquisa mais real e honesta, e não apenas em suas simpatias e antipatias próprias.

Hoje chega-me o texto “A arte da guerra” de Arthur Dapieve, que, de  certa forma , responde a seu colega, citado acima. Arthur ressalta o mesmo discurso de Churchill  (de quebra me fazendo saber que este ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1953!),  mas trazendo uma versão um tanto diferente: “Guerras não são ganhas com evacuações” – e, de quebra, alerta para o duplo sentido da última palavra, no inglês – evacuation. Dá pra pensar, assim, que o uso do termo retirada não foi uma boa opção. 
Continuando nos elogios à capacidade oratória de Churchill, Dapieve diz que ouvir a fala do primeiro ministro inglês o conclama a pegar um rifle e correr para uma trincheira - inglesa, como ele a situa.

Pois bem. Não consegui resistir mais a tanto estímulo e fui conferir, assistindo ao filme, que, no Brasil, é chamado pelo nome original – Dunkirk.
Por duas horas, sofri muito. Vi-me outra vez uma menina, num tempo em que os filmes da segunda guerra eram tão comuns e me faziam suar frio, ter taquicardia, esticar o corpo na cadeira, segurar o rosto, cobrir gritos imaginários com as mãos, tudo para dar conta de emoções tão maiores que meu frágil corpo. Mas, felizmente, as sensações não ficaram apenas por aí e me fizeram pensar, ligando o que vi ao que ouvira e lera.

O primeiro colunista, da mesma forma que a pessoa de minha família, ressalta a ausência de visibilidade dos inimigos alemães. Eu penso que é pra lá de oportuna essa estratégia, exatamente porque o que o filme faz é que sintamos que o grande inimigo não tem nacionalidade. Ele pode surgir de dentro de cada um de nós, nos sabotando, nos surpreendendo, nos atacando, nos fazendo maltratar o outro, rejeitá-lo, feri-lo, destruí-lo, nos tornando frágeis, doentes, perversos.
Poderíamos pensar que, em tempos de guerra, isso é natural. Mas que tempos na vida que conhecemos até hoje, não têm sido tempos de guerra?
A espécie humana, representada nesse caso pelos homens e pelo comportamento masculino, sob toda sorte de pretexto - de competição, por garantia de sobrevivência, de salvaguarda da propriedade, de proteção da família, de defesa da honra etc. etc. etc. – sempre viveu às turras e segue se especializando e se aparelhado mais e mais para matar melhor, para destruir em escala maior e maior e maior, servindo assim, cegamente, à Tanatos, a força mortífera por execelência.
Por outro lado, os parceiros (porque o termo aliado já me cheira mal, de tão desgastada) têm, em nós, a mesma origem. E resistem heroicamente ao combate interno, insistindo em que sejamos compassivos, solidários, indulgentes, honestos, persistentes e que acima de tudo não percamos a esperança na força da Vida - Eros.

Há momentos preciosos no filme, que nos fazem perceber o quanto podemos ser sublimes e o quanto podemos, igualmente, ser mesquinhos. Não tem sentido relatá-los aqui, mas ao assistir de coração aberto, a gente sabe exatamente porque o trecho do discurso de Churchill que encerra a apresentação fala de um mundo velho que se acaba, para que um mundo novo possa surgir.

O "Canal da Mancha" de nossos dias também precisa ser atravessado, para aqueles que sobrevivermos ao massacre de nossos ideais, de nossas conquistas arduamente construídas, da tentativa de nos tirarem a fé em nossos valores.
Sim, nós precisamos voltar para casa. Para o lugar, dentro de cada um, em que ainda exista comprometimento com o Bem.

Clarissa Pínkola Éstes, no livro “Mulheres que correm com os lobos” ensina que às vezes recuar pode ser a melhor estratégia, para traçar uma rota possível de defesa.

Pensando no Brasil de hoje e parodiando Churchill, eu diria que não será com essa “lambança” (pra não dar o sinônimo exato ao dejeto da evacuação forçada) que iremos ganhar a batalha em que estamos sendo metidos à força, como recrutas ingênuos. Mas que sirva de estrume todo o lodaçal que tem sido remexido e em que nos tem sido enfiado goela abaixo.


A transformação virá. O velho mundo agoniza e soçobrará, como uma embarcação inadequada. Questão de tempo. Há de vir uma humanidade nova, que não se erga sob os escombros de seus semelhantes. 

Em tempo: Se você mudar a localização da trincheira, Arthur Dapieve, conte comigo na defesa do território da esperança.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

O roubo da alma


Recomendaram-me assistir “Monsieur e madame Adelman”. Fui e agradeço a indicação. É um excelente filme!
No saguão de entrada do cinema encontrei amigos que supunham estarem indo ver  uma comédia romântica. Pela sensibilidade de quem me enviou esta sugestão por email, imaginava que não se tratava bem disso. Acertei, é claro.
O filme remontou-me às leituras de Clarissa Pínkola Estés em seu “Mulheres que correm com os lobos”, quando ela fala do roubo da pele, roubo da alma, a partir do mito “Pele de foca”. Ali, no texto de Clarissa, é a mulher quem perde sua essência. Trabalhei 14 anos com grupos de muitas mulheres e alguns poucos corajosos homens sobre esse tema e outros afins. Sempre procurei dar enfoque ao feminino como força potencial, comum aos dois sexos, mais que ao gênero propriamente dito.
No entanto, atualmente, venho pensando insistentemente, a partir de uma observação apurada sobre os relacionamentos que assisto e de muitos que, por tão próximos, chegam a me preocupar e até ferir de certo modo, em como essa questão tem vindo se propagando e acirrando e de como, muitas vezes, é a mulher que tem sequestrado o espírito do companheiro.
Quando me refiro à mulher e homem, leiam, por favor a função que cada um desempenha, na relação, qualquer que seja o tipo de casal.
Em “Monsieur e madame Adelman” acontece justamente essa mistura de identidades e esse aprisionamento do outro, por ressentimento, insegurança, obstinação, inveja, tudo muito bem disfarçado no invólucro denominado amor, casamento, parceria.
Conheço esse roteiro e posso testemunhar, com segurança, que não acaba bem.
Saí do filme triste, cansada, apressada em regressar à mim.
Aos 69 anos, muitas relações pessoais, dois casamentos, amores intensos e espectadora/cuidadora de muitos envolvimentos a meu redor, não consegui me vacinar contra desencanto, manipulação, distorção, controle. Embora meu faro me permita identifica-los à distância, sinto-me impotente frente à inebriante atmosfera que o encantamento cria e às distorções que cria.
“Monsieur e madame Adelman” traz o espelho e a possibilidade de reflexão.

Endosso aqui a recomendação.