quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Pelos caminhos da vida terrena, a eternidade



Nasci envolta numa atmosfera religiosa. A escolha de meu nome veio do desespero de minha mãe, ao me ver quase natimorta. Clamando imediatamente por Nossa Senhora, prometeu chamar-me Maria, em homenagem à Grande Mãe, se eu sobrevivesse. Horas depois, já superada a tensão, uma freira - amiga da família - sugeriu que eu fosse Inez, em louvor (e compromisso!) à santa-mártir que morreu assassinada, para resguardar a própria virgindade. Sou do Espírito Santo por herança paterna, certamente longinquamente ligada aos mesmos princípios.

Não, não renego meu nome. Longe disso, gosto muito dessa combinação, que me tornou inegavelmente portuguesa, desde o princípio, e agraciada por tantos desejos amorosos e bem intencionados, que, uma vez compreendidos e elaborados, a nada me submeteram.

Na infância, estudei em escolas católicas. Se as experiências vividas ali me fortaleceram a sede pela justiça, porque estranhava a hipocrisia e a competição estimuladas em cada detalhe (mesmo quando me favoreciam), foi por isso, também, que me tornei essencialmente uma educadora e uma psicanalista.

No Colégio Notre Dame de Sion, além de aprender a valorizar a cultura francesa, encontrei a Soeur Cecília. Eu tinha 8 anos quando recebi, pelas suas mãos, os valores cristãos presentes nos Evangelhos. Em suas aulas de Religião, ela nos convidava a encenar e, mais que isso, a interpretar detalhadamente os textos do Novo Testamento. Éramos orientadas a buscar, nas entrelinhas deles, as lições de humanidade, transmitidas por Jesus aos apóstolos, que mais tarde as transcreveram, permitindo que se espalhassem pelo mundo, através dos tempos. 
Sem plateia e sem censura, Soeur Cecília fazia um lindíssimo trabalho nada pretensioso, dentro de sala de aula. A consciência que tenho hoje da importância que aquelas vivências tiveram para mim faz meu coração vibrar, em gratidão àquela educadora inigualável!

Mas, na adolescência, a vida me envolveu em duas situações críticas, que me levaram ao total desencanto com a Igreja. A primeira diz respeito à Confissão. Um monsenhor, sem nenhuma sensibilidade e respeito, entediado com a repetição de meus pequenos e insossos “pecados”, sussurrados mais por imposição do ritual, que por necessidade interna, censurou-me por estar sempre a cometer as mesmas falhas e ameaçou não me dar mais a absolvição. Demorei um tanto a perceber que ele queria, de fato, era ouvir um repertório mais estimulante e variado. 
Naquele dia, deixei o confessionário me sentindo rejeitada e até mesmo insultada. Não mais me confessei. Ainda bem. Corria o risco de me tornar uma grande “pecadora”, se quisesse corresponder a suas expectativas...

Pouco tempo depois, numa situação em que desconfiei que a Igreja Católica se prestava a uma atuação política não explicitada, sentindo-me confusa, procurei o Bispo Diocesano, a quem julgava conhecer suficientemente, com a expectativa de que pudesse ser um bom orientador naquela questão. Desejava que clarificasse, para mim, os acontecimentos que eu vinha presenciando e que não estava conseguindo compreender. 
Para meu terror, depois de me ouvir, ele me encaminhou ao Serviço Secreto de Informação do Exército. Pretendia, simplesmente, que eu me tornasse uma espiã, a favor da Ditadura Militar. Pasmem, se quiserem! Um dia ainda hei de contar, com detalhes, essa história. Mas, trago-a, aqui, por me fazer lembrar o motivo pelo qual me afastei deliberadamente da instituição Igreja Católica.

Para reforçar meu desencanto, ao me aproximar, muito tempo depois, de outras religiões, senti repetir-se a valorização de atitudes de interesses materiais, de controle, de poder sobre o outro. Apenas confirmei o que eu já sabia, portanto.
Mas nem tudo foi perdido. Pouco a pouco, venho encontrando na Natureza (interior e exterior) o espaço sagrado onde me recolher. E o faço, regularmente, sentindo o mesmo êxtase que me provocava o incenso das cerimônias que, com tanto fervor, frequentei no passado.

Aonde quero chegar com essas recordações, e o que me levou a evocá-las? Talvez vocês estejam aguardando que eu faça uma ancoragem no presente. Saio de minhas divagações individuais e aporto, na esperança de que nos possamos encontrar, em nossas reflexões mútuas:

Recebi há pouco, uma postagem sobre o Sínodo da Amazônia e, lendo as palavras do Papa Francisco, confirmo que o mais importante do que foi vivido na minha trajetória, ficou mesmo dentro de mim. Referindo-se aos críticos que atacam suas propostas quase revolucionárias, o Papa diz:

“Porque lhes falta a coragem de assumir assuntos terrenos, eles acreditam que estão assumindo os de Deus. Porque têm medo de fazer parte da humanidade, pensam que são parte de Deus. Porque não amam ninguém, iludem-se, pensando que amam Deus.”

Isto me fez pensar, com tristeza profunda, na quantidade de pessoas queridas, em que constato uma postura de negociação com o Divino. Semelhante ao que Paulo Freire denuncia que se faz com a Educação - ao construí-la num princípio bancário - sinto que a maioria das pessoas concebe a religião como um espaço de barganha. Elas como que depositam sua fé (?) - expressa em sacrifícios, em trabalhos servis à instituição, em tentativas de conversão de outras pessoas, em trocas de benesses - em busca de uma ampla proteção superior, que lhes garanta viver o lugar de filhos prediletos, isentos de sofrimentos e reconhecidos irrestritamente. Em palavras mais diretas: que lhes traga dividendos!

Em nome de uma doutrina que repetem sem compreensão, julgam e condenam - sem direito a apelação - seus semelhantes, chegando mesmo a maltratá-los e, mesmo assim, sentindo-se superiores a eles, em merecimento. Creem que esse investimento contínuo e cego lhes trará segurança e lucros. Em resumo, querem alcançar um idealizado paraíso, no delírio de se tornarem divinos, isolando-se no aprisionamento do egoísmo e da arrogância estéreis.

De Roma, as notícias, que nos chegam, mostram que o Papa Francisco está sofrendo uma enorme pressão de opositores aos princípios que defende. Nem poderia ser diferente. Ele ensina, sem pudor, que a tradição tem que estar voltada para a preservação do futuro, irrigando e alimentando -  como seiva -  o corpo maior que é a Vida, para que ela se renove e continue a frutificar.  Desse modo, descendo do púlpito a que foi alçado, aproxima-se cada vez mais do  Jesus crucificado, um ser humano feito Deus através da simplicidade, da humildade, do despojamento e da bondade e da profunda capacidade de compaixão, com que passou pela Terra.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Toque de alerta


Há quem me julgue excessivamente reativa, agressiva e até violenta, em meus comentários nas redes sociais.
Não sou mesmo, nem pretendo ser, uma pessoa absolutamente doce, tranquila ou desligada. Mas também não sou inconsequente, irresponsável ou cínica.
Claro, eu poderia fingir não ver e não ouvir, como fazem muitos que seguem aguardando o desfecho dos conflitos, para se posicionar a favor... de quem estiver no comando, é claro.

Nasci em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, lugar onde fazia sempre muito calor.  Quando eu era criança, aquela cidade era conhecida como a terra do Tenório. Tenório Cavalcanti fazia, na vida real, um personagem misto de bandido e justiceiro, mostrando-se extremamente poderoso e misterioso – uma espécie de cangaceiro urbano. Em Caxias, de então, enxergar era ver, de frente, as valas negras e sentir seu cheiro fétido, denunciante da podridão social.

Cresci em Petrópolis, nas montanhas do mesmo Estado do Rio, numa época em que a cidade era sempre bastante fria, envolta na neblina de um ambiente formado pelas consequências da ocupação mista de alemães e de mineiros, em sua maioria. Por alguma razão, parece-me que, aos poucos, as pessoas dali foram alimentando a pretensão de serem herdeiros da Coroa. Assim, Petrópolis não perdeu, ainda hoje, o ranço de se julgar A Cidade Imperial, e por isso não se preocupa em resolver nem os problemas de saneamento, nem aqueles gerados pelo alto índice de preconceitos e de arrogância, que a caracterizam. Em Petrópolis, conformar-me com o que via, sem denunciar ou buscar transformar, seria ter-me tornado mais uma pessoa medíocre e pretensiosa.

Morei no Rio de Janeiro que, próximo ao mar, deveria garantir horizontes amplos e esperança renovada a seus habitantes. E tem isso, em parte, a Cidade Maravilhosa. Mas, cheguei tarde demais, talvez, e tive que conviver, dolorosamente, com o descaso das camadas sociais privilegiadas, moradores dos bairros considerados nobres, que diariamente usufruem da servilidade que impõem a trabalhadores, cujo valor humano e social não reconhecem. O Rio de Janeiro é uma escola de superficialidade, encravada numa paisagem magnífica, cujas benesses são propriedade de uma casta. Ficar no Rio de Janeiro teria me exigido aprender a rir e calar-me, mesmo quando meus olhos quisessem chorar.

Hoje, vivo distante do Brasil. Assisto, de longe, o desmonte de meu país de nascimento, já tendo uma segunda nacionalidade herdada, que me garante uma velhice mais coerente com o que desejo ser e com o que sigo buscando ir formando em mim, até o fim de meus dias.

Para me comunicar com os amigos e conhecidos de terras distantes, acostumei-me a frequentar as redes sociais, na esperança de que, em alguma hora surjam, ali, as boas notícias com que sonho e pelas quais aguardo a cada momento, ansiosamente. Mesmo correndo o risco de que, com elas, alguém possa me provar que fui pessimista demais. Ah, como eu desejaria me penitenciar por ter (quem sabe, apressada ou levianamente?) feito avaliações tão severas, indevidamente!

No entanto, o que constato, pelas notícias diárias, é o extravazamento das valas negras  e a expansão dos terrenos desérticos morais, transformando o país num enorme terreno  estéril, geográfica e emocionalmente, onde não existe nenhum respeito à vida, nenhum pudor em fazer do egoísmo uma atitude banal, nenhum comprometimento com a realidade, nenhuma valorização do cuidado, da compaixão, da solidariedade.

Pergunto-me, muitas vezes, o que ainda sigo defendendo, se já nem mais tenho a ingenuidade de pensar os seres humanos como uma espécie em desenvolvimento?

Parece-me que sigo escrevendo, aos jorros, para não sucumbir. Para defender minha saúde psíquica e minha capacidade de sentir. No amontoado de inverdades, mentiras, declarações e denúncias criminosas, crueldades, perversões, descaso e frieza em que vivemos, o risco maior é virarmos robôs, zumbis, criaturas fakes, como essas que nos vêm tentando aprisionar.
Quando a gente se encolhe, se acomoda e se esconde, definha. E nosso verdadeiro self, nosso eu mais profundo, centro energético de nossa capacidade de criar e de transformar, vai-se desidratando e sucumbe. Assim, para não lidarmos com a indignação, com o medo, com a insegurança, podemos acabar impedidos de amar, porque somos - cada um de nós - um universo, onde esses campos sombrios existem e precisam ser identificados, para ser integrados e, só assim, fazer parte do fortalecimento necessário à existência plena.

Este momento era pra ser uma reflexão compartilhada, apenas. Acabou por se tornar um alerta. Se for possível, ouçam-no.



domingo, 27 de outubro de 2019

Celebrando a vida



Hoje é dia 27 de outubro, uma das datas em que se festeja o nascimento de Lula.

Escolho, como homenagem a ele, retomar meu Blog, para deixar minha mensagem à defesa dos direitos humanos, que ele tão bem representa.

Há mais de um ano, venho escrevendo publicamente apenas no Facebook, mesmo conhecendo os riscos que isto impõe: ser controlada, censurada, até perseguida e dispersar minhas reflexões em postagens instantâneas. Isto tudo,  além da dor de conhecer, ali, facetas cruéis de supostos amigos o que, muitas vezes, me obrigou a rompimentos, talvez definitivos. Por outro lado, levando em consideração a má qualidade e tendenciosidade da mídia em geral, o Face acabou por se constituir em um canal por onde receber notícias de parceiros (velhos e novos) e poder compartilhá-las. Desse modo, mesmo distante do Brasil, seguir fazendo minha parte na resistência imprescindível a esse momento vergonhoso da nossa história.
No entanto, não desconheço minha necessidade (e responsabilidade) de escrever mais amplamente, de expor melhor minhas concepções, gerando, em contrapartida, novos diálogos, quiçá mais profundos. Por isso, a escolha  oportuna de voltar ao Blog, nesse momento.

Desde cedo, hoje, lendo os posts de saudação a Lula, constato, uma vez mais, a imensidão de amor que ele desperta naqueles que, desde as camadas menos privilegiadas até a dos grandes intelectuais de nosso tempo, acreditam na possibilidade de construção da justiça social.

Não há de ser por acaso que os que desprezam Lula, os que o vilipendiam e o injuriam sejam os representantes da medíocre camada acomodada em vantagens individuais, os que temem as transformações, os que negam a existência de privilégios e se defendem, paranoicamente, procurando aniquilar qualquer líder que questione essas posições egoístas.

Votei em Lula nas duas vezes em que ele se elegeu Presidente e não me arrependi em nenhum momento de minha escolha. Ele representou e representa meus anseios e, dentro de suas possibilidades, alçou o Brasil à posição de uma nação digna do respeito internacional, que bem merece ter.
Lula não fez isso sozinho, é bem verdade. Mas foi ele que carregou a bandeira. Por isso está preso. Porque é um símbolo poderoso da força do desejo de tantos brasileiros, de diferentes estratos sociais, que acreditam na possibilidade de haver uma vida digna para todos.

Não sou uma pessoa nada diplomática e, mesmo em Lula, por quem tenho tanto respeito, às vezes me assusta a capacidade de andar na corda bamba, que a postura um tanto reverente dos cargos públicos exige. Por isso eu jamais seria capaz de concorrer a um cargo político. Tiro o meu chapéu para quem sabe fazer reverências dignas, sendo bem-ensinado pela vida. Sou rebelde demais para isso. Mas, minha incompetência, nesse setor, não me impede de fazer o reconhecimento da importância que tem Lula no panorama nacional e mundial.
Não julgo que ele seja “o cara”. Mais do que seguir repetindo um clichê desgastado, acredito que Lula seja o símbolo de alguma coisa maior e mais verdadeira, que vem sendo resgatada em muitas sociedades mundiais e que trará uma quebra dos padrões que têm feito, dos seres humanos, parte de um mecanismo sórdido de escravização, em benefício de uma conjuntura na qual o dinheiro é o deus supremo.

Sim, é pela boa educação (não unicamente formal) que podemos chegar a compreender melhor nosso próximo e a desenvolver compaixão mútua. Lula teve as bases desses princípios na criação amorosa de uma mãe extremamente dedicada e as desenvolveu nas famílias que constituiu, encontrando, por isso mesmo – porque soube identificá-las - parceiras leais e dedicadas. E atualmente faz de seu tempo, em sórdida reclusão imposta, um espaço para buscar mais e mais informações, desenvolvendo novas reflexões, que expandem sua sabedoria e o fortalecem.
Em todo este tempo em reclusão, Lula não esmoreceu, nem aceitou barganhas. Segue de cabeça erguida. Declara seu amor irrestrito por uma infinidade de pessoas e por coisas simples, sem envergonhar-se disso. Não se queixa. E tanto expressa indignação pelas vilezas de que é vítima, como pela destruição do país e pela penalização perversa à que a população vem sendo submetida.

Por tudo isso eu o julgo um gigante, e não tenho a menor dificuldade em reconhecer a incomensurável importância de sua existência.

Há controvérsias sobre o dia exato em que Luiz Inácio da Silva veio ao mundo. Os registros não garantem a exatidão do primeiro vagido daquele bebê predestinado a ser um grande homem público, dono de coragem, tenacidade, inteligência, amorosidade e argúcia ímpares. Que importam as certidões? Lula é o melhor atestado de sua própria existência.

Agradeço à vida por nossa contemporaneidade. Por ter-me permitido celebrar um tempo em que presenciei o povo, totalmente livre, viver o júbilo de sua chegada à Presidência da República. Nunca esquecerei aquele momento de glória, ainda sabendo que é exatamente aquele instante - de superação de todas as humilhações populares - que seus algozes não perdoam, nem perdoarão, jamais.

A Lula eu digo: muito grata por ser quem é.  Imperfeito, como todos nós, mas comprometido com a capacidade genuína de recomeçar sempre, buscando ser melhor. Por nos ensinar, pelo exemplo, a fé no amor, acima de qualquer outra crença. Por contagiar, a todos, com o brilho de seu olhar - mesmo quando embaciado pela dor - vindo da solidariedade que defende a cada momento.

Gritar Lula Livre não é favor, nem virtude. É dever de quem acredita na Vida. Uma parte de todos nós está definhando, enquanto Lula não estiver de volta ao convívio de seu povo, onde demonstra e estimula a melhor forma de honrarmos nossas raízes, alimentados pela seiva que sustenta nossa brasilidade.