quinta-feira, 9 de abril de 2020

Depois II


Nesses dias, mesmo sem querer, temos esbarrado, aqui e ali, com fragmentos de nossas memórias. Pensando que possamos estar vivendo o depois, proponho que abramos esses álbuns de recordação internos, onde ficaram guardados, aleatoriamente, momentos passados... 
Revisitar imagens mentais de situações quase esquecidas pode-nos pôr em contato com o que restou de mais precioso, pode-nos levar a repensar costumes e principalmente nos fazer atestar a temporalidade de tudo.

Sim, eu estou dizendo que existem muitas vidas numa mesma vida. Muitos fins e muitos recomeços.  Seguindo esta mesma linha de pensamento, acredito que o planeta Terra continuará a existir, refazendo-se indefinidamente dos maltratos que lhe infligimos, da exploração que lhe impomos e de nossa arrogância em querer transformá-lo, pedacinho por pedacinho, com boa ou má intenção, por nos julgarmos superiores à Natureza, como se não fôssemos uma ínfima parte dela.
Sim, eu sei que o ser humano traz, em sua constituição, pulsões de criação e de destruição, vida e morte lutando continuamente, transformadas pela necessidade de participar de grupos comunitários, respeitando acordos entre Bem e Mal, a que denominamos Éticas. Sei que, por mais que tudo o que nos está nos acontecendo neste momento seja terrível, a  maioria de nós sobreviverá, alguns talvez modifiquem sua rota espontaneamente, muitos terão que se ajustar a novos modelos, mas que dificilmente a revolução de costumes virá de uma hora para outra, tão logo seja banido este vírus específico.

Ontem, ouvi que não é verdade que o mundo já tenha sido diferente. Que o quadro que descrevi, no texto anterior, tem, como antiquíssima causa, a miséria de uns, ignorada pela comodidade de muitos, explorada pela ganância de outros tantos. Lembrou-me, uma leitora, recordações de minha infância, que compartilhei em outros escritos, onde descrevo as valas negras da cidade onde nasci, servindo de quintal para crianças seminuas, misturadas a porcos, cachorros esquálidos, cercados por urubus ciscando carniça... Aliás, foi assim que conheci a palavra carniça: como parte da paisagem que via, de dentro do carro, pela janela que tinha que ser mantida fechada, apesar do calor (ainda não havia ar condicionado) para que não sentíssemos o cheiro insuportável vindo do exterior, onde era comum avistarmos animais mortos, expostos sobre a terra. Estas cenas amplificadas, ladeavam a rodovia que ligava a capital do Estado à cidade Imperial, com a acumulação de muitas centenas de barracos, colados uns aos outros, moradias pra lá de precárias de uma população inteira desguarnecida de cuidados. Era uma travessia impressionante, que se precisava fazer para ir e voltar, a cada passeio de fim de semana, e que me fazia imaginar como viviam aquelas pessoas, respirando aquele ar pesado e quente,  acrescido do cheiro de óleo queimado dos automóveis e caminhões, com o Mangue ao fundo, como se fosse um horizonte sombrio...

Mas, ao mesmo tempo, havia pela mesma estrada, os vendedores de caranguejos segurando réstias daqueles bichos vivos, escuros e avermelhados de muitas pernas, como aranhas gigantes e cascudas, oferecendo-os como matéria para o prazer profano de experimentar o fruto dos manguezais, alimento pra lá de primitivo. Aprendi, assim, a observar os caranguejos e ver como seus olhos giram, projetando-se fora do casco, como periscópios e como esses animais são capazes de andar pra frente, pra trás e pra ambos os lados. Grandes mestres, saídos de dentro da terra pulsante!

Depois, quando retiraram as favelas da Baixada Fluminense, fizeram-no com tal desrespeito à cultura desenvolvida naquelas comunidades, que não levaram em conta a distância dos centros urbanos onde toda aquela gente trabalhava, nem consideraram suas necessidades, ligadas ao ambiente ao qual se haviam adaptado, julgando, talvez, que bastaria dar-lhes casas de tijolos, vasos sanitários e tanques para resolver seu problema de insalubridade. Talvez fosse, no fundo, para resolver nosso problema de insalubridade psíquica, por termos que nos confrontar com tamanha e gritante desigualdade, reprimindo a culpa e a consternação! Todos sabemos no que deu a iniciativa de transferência imposta àqueles moradores, que nem mesmo serviu para dar notoriedade aos políticos que a promoveram. Muito pelo contrário, eles seguem sendo  condenados pela opinião pública, até hoje. E a Cidade de Deus, por ironia, erguida como solução, persiste revelando e propagando a violência existente desde a origem de sua criação.

Então - vocês podem estar pensando - concordo com quem me diz que o mundo nunca foi diferente? É falsa, então, minha afirmação de que o mundo, como eu o conheci, já acabou, faz tempo? Este estado de miséria humana sempre existiu e prosseguirá indefinidamente?

Vivi muitas vidas. Estou aqui há tempo suficiente para ter tido a sorte de conviver em muitos entremundos, espaços de mais e menos conforto, luxo até, pobreza também. E o que que é comum a todos eles, que me faz estranhar tão profundamente e denunciar tão veementemente posicionamentos egoístas, exploradores e de profundo desprezo de quem não quer ver e não quer sentir o sofrimento alheio?  O espaço interseção, que identifico naqueles mundos de outrora, é o da existência de algum resquício de humanidade, construída a duras penas, por sofrimentos de gerações anteriores, que ainda se mantinha, e que vem sendo cada vez mais rapidamente perdido. Penso que nós, os mais bem aquinhoados por termos mais acesso à escolaridade superior, a cuidados de saúde, a mais horas de descanso, a muito melhor alimentação, a conhecimentos mais expansivos advindos de leituras, viagens, privilegiados até mesmo por maior tempo livre de trabalho pesado, que nos permite participar de práticas espirituais -  portais de transcendência capazes de desenvolver compaixão - somos os que deveriam ter cuidado em promover não progresso, mas desenvolvimento. Mas a verdade é que não o fizemos. Como continuamos não cuidando disso, até agora.

A dificuldade em cumprir este tempo de quarentena escancara nossa onipotência e traz o pavor de olhar nossa imagem, no gigantesco espelho em que se transformou o dia a dia. Ninguém quer se sentir tão frágil, como de fato é. A morte, trazida pelo inimigo invisível, de que não conseguimos ainda conhecer a tática e as artimanhas, escancara sua boca esfomeada, pronta a devorar qualquer um. Há quem brinque de roleta russa, negando poder ocupar o lugar de vítima fatal. Há quem deprima, porque não sabe lidar com as necessidades básicas e sinta falta do que é acessório, como se fosse vital: o cinema, o cabelereiro, o exercício acompanhado pelo treinador pessoal, o chopp com os amigos na praia, a ida ao shopping, as festas, as reuniões presenciais de trabalho, as viagens, e vai por aí... Alguém escreveu que é muito revelador se falar em quebra da economia, num momento em que as compras estão restritas ao que é necessário. E nem é só o essencial que está sendo consumido. Os sortudos, continuam comprando no supermercado ou mandando vir dos açougues ou dos delíveres muito mais do que aquilo de que realmente precisam. Mimam-se, para esquecer que não podem trabalhar fora de casa, para esquecer que as crianças têm insistentes reivindicações não mais delegáveis a outros (babás, professores, terapeutas, empregados, avós), para não lembrar que são solitários, que não têm recursos internos suficientes para lidar consigo mesmos.  Sim, é humano que queiramos satisfazer nossos pequenos desejos, ainda permitidos. Mas quando virá a preparação para o outro mundo que já está aí, se impondo faz tempo, desde que o anterior foi-se esfacelando e sendo remendado, até que se decompôs e nos deixou, como estamos, de mãos vazias?

De meu conjunto de recordações, escolho preservar o modelo das feiras livres de minha infância e adolescência, perfumadas pelos cheiros múltiplos dos legumes e das verduras puras, das frutas frescas, das flores exuberantes. Quero de volta a potência dos peixes frescos, que a gente aprendia a reconhecer pelos olhos e pelas guelras; dos ovos de gemas amarelo-ouro, doados por galinhas que comem milho e mato e pastam soltas, catando minhocas, ciscando o quintal e deixando sua contribuição para o adubo da terra, convocadas, desde a madrugada, pelo canto do galo... Por mim, quero de volta as horas do dia de tal forma plenas, que continham momentos que pareciam custar muito a passar e seguiam, aguardando as outras, céleres, que se esvaíam em pequenas alegrias! Quero as compras planejadas, sonhadas e de tal forma desejadas, que cada roupa, cada livro, cada presente, cada brinquedo era um bem precioso a zelar, recheado por muitos prazeres secretos a serem despertados em cada minuto de uso e de convívio. Quero as férias com gosto de entusiasmo e tempo livre, quer fossem passadas em casa, quer se enriquecessem em pequenas viagens cuidadosamente idealizadas e que sempre traziam muitas experiências excitantes, as melhores mestras dos saberes e dos sabores, dos encantamentos, das inspirações. Quero os encontros, marcados ou súbitos, iniciados nos olhares que se cruzam e se acendem, chegando ao abraço e se eternizando nas conversas boas, aquelas de que nunca mais se pode esquecer. Quero a água limpa, que é de todos, que precisa fluir e matar a sede, lavar e purificar tanto o corpo quanto a alma, trazendo descanso e paz, que garante para sempre, a cada um, a serenidade do sono de criança, de que já desfrutamos, um dia.

Estou, sim, plasmando, nesse momento, o mundo do qual pretendo continuar participando ainda um pouco mais. Se chegamos até aqui, cada um de nós, trazendo no coração seus álbuns de recordações valiosas, boas e más, precisamos honrar essa oportunidade de virmos a ser, mais que sobreviventes, autotransformadores, cocriadores de uma nova realidade. 

Por enquanto, deixemos abertos nossos relicários...

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Depois - Parte I



As pessoas reclamam a perda da liberdade, por terem que estar em suas próprias casas, nos locais e com as pessoas que escolheram para compartilhar suas vidas. Estranho. Será que só eu já não me sentia livre, antes do confinamento decretado? Só em mim a sensação do risco do aprisionamento a um mal muito maior existia há muito tempo? Justo eu, que arrisquei libertar-me de bens, de compromissos, de presenças e quase me exilei espontaneamente? 

Outro dia uma amiga me lembrou, ao telefone, que eu comentava há muito tempo que o mundo já tinha acabado. Que a vida à qual normalmente nos referimos não existia, fazia tempo. Essa sensação de estar vivendo um depois me acompanhava nos últimos anos, trazendo-me um olhar distante para tudo. 
O mal-estar, que as ruas encardidas e fedorentas da cidade me produziam, chegava à dor física ao ver pessoas vivendo como ratos de esgoto, no meio das praças, por onde passava o tempo todo, distraidamente, uma população satisfeita. Como conseguem uns e outros? – eu me perguntava, enquanto apressava o passo, tentando desviar meu olhar que se prendia, hipnotizado, na criança maltrapilha ao lado do mendigo bêbado que empurrava a mulher que o xingava, rindo, num esgar de deboche, para o PM que, alheio a tudo, falava ao celular, enquanto as baratas borbulhavam nos bueiros disputando com as ratazanas os restos da feira-livre e do supermercado fétido, que alardeava promoções de comida, deteriorada e conservada em formol, com que as pessoas lotavam carrinhos de compras, estufando o peito, mais ou menos ostensivamente, de acordo com a quantidade arrebanhada, paga com cartões de crédito cujos limites são forma de identificação maior que os sobrenomes.

Os vendedores ambulantes, defendendo seu direito ao trabalho sem horário, aparentemente sem patrão e que lhes garanta um rendimento mínimo, já formavam um cenário móvel e sonoro para o enorme pandemônio armado. O metrô vomitava gentes que se atropelavam na urgência de chegar à superfície e continuar enlouquecidamente sua marcha para um futuro que já não havia. Mas seria possível que só eu enxergasse tudo isso? Só o meu coração doía a ponto de me roubar a inspiração, o apetite, a libido, a paciência, a saúde? Como seria possível me conectar com as flores das bancas multicoloridas, se elas já estavam misturadas, como se fossem da mesma espécie, a grosseiras peças de plástico e fossem oferecidas por vendedores que comiam a mesma quentinha engordurada que matava a fome de tanta gente, enquanto diziam o preço, embalavam as plantas e recebiam o dinheiro, mastigando apressadamente a comida e todo o lirismo perdido da possibilidade de ser um florista?

Os pivetes, às dezenas por todo canto, davam encontrão em quem podiam e levavam-lhe alguma coisa que trocariam por qualquer entorpecedor de realidade. Como censurá-los? Quantos cafés eu mesma precisava tomar por dia para conseguir manter meus olhos abertos e minha mente afiada? Quantas vezes, ainda que sentindo-me enfraquecida pela fome, meu paladar não despertava, bloqueado pelos cheiros de uma infinidade de restaurantes, lanchonetes, barraquinhas de pastel, de churros, de tapioca ou pipoca profanadas por queijo derretido fedido, das frutas e legumes que sobravam das feiras, tudo temperado pelo odor inconfundível de urina, fezes, pontas de cigarro esmagadas no chão, embebidas no caldo preto da chuva acumulada, escarro, peças de roupas imundas abandonadas, largadas pelo caminho!

Só eu percebia que o mundo já tinha acabado e estávamos mortos-vivos perambulando num limbo, na periferia do inferno? Só eu me senti agredida por um mesmo banco manter duas agências lado-a-lado, com atendimento diferenciado, uma perfumada desde a calçada, higienizada, oferecendo cafezinho, brindes e crédito imediato, enquanto na outra os clientes precisavam se amontar, esperar nas filas, implorar por um empréstimo, pagar juros mais altos? Só para mim as notícias tenebrosas foram se tornando tão inverossímeis, já que não provocavam nenhum movimento de transformação nos ouvintes? Só eu passei a ter horror de novelas, programas humorísticos ou até músicas que vinham (há décadas!) cultivando hipocrisia, crueldade, desrespeito, preconceitos, como se fossem simples entretenimento? Só pra mim as infinitas entrevistas passaram a causar desconforto, porque não inspiravam confiança?

Os amigos e até parentes achavam que eu exagerava. Podia-se (e acreditam que ainda possam) – eles diziam - parar o carro, descer no estacionamento do teatro, do cinema, do restaurante, do shopping, sem precisar entrar em contato com tudo isso que pode vir a incomodar. Podia-se (e acreditam que ainda possam) dar alguma ajuda a um e a outro carente que se encontre (e aí inclui-se os atores mambembes), prestigiar artistas (de sucesso, é claro, de preferência celebridades), participar de um movimento de benemerência e depois beber alguns drinques, fumar uns, tomar um tranquilizante ou um antidepressivo e aplacar o mal estar, dando prosseguimento aos negócios, àquilo que ainda chamam  de relações, ao projeto de êxito que foram treinados a construir.

Só a mim, provavelmente, ocorreu que as comemorações em família tinham perdido o sentido, se o que contava não era mais o encontro e os afetos compartilhados (fáceis ou difíceis), mas que sempre se esperava criar ali, um clima de excitação sem fim e uma encenação de felicidade, facilmente substituída, ininterruptamente, durante todo o ano, pelos agrupamentos com amigos, que passaram a ser todos os que se pode juntar: nas redes sociais, nos incontáveis almoços, jantares, festas, nas viagens organizadas coletivamente... Só eu via que tudo passou a ser uma exibição sem fim? Exercício inconsciente de parecer ser, ao invés de ser. Independente da classe social, o importante é o que pensa o outro. O quanto se pode despertar sua inveja, chamada, erroneamente, de admiração. Não importa se é pela beleza (a própria ou do parceiro), pelo  desempenho profissional ou social, por ter mais charme, pelos filhos parecerem  herdeiros da esperteza que inclui a valorização do ter sobre o ser, o que parece contar é o quanto a torcida grita pelo gol, mesmo que o jogador esteja exausto e nem torça, de coração, pelo time em que joga.

Acordei, após o apocalipse, faz tempo. E passei a vagar, perdida nos dias que vieram depois. Sim, tentei evitar. Antes, recolhi-me no campo e tentei falar metaforicamente através dos mitos. Busquei as Belas Palavras, como dizem os Guarani. Mas até esse movimento passou a ser capturado, para ser colocado no lugar das excentricidades. Recatei-me, para não desonrar a herança ancestral. Esta perdurará eternamente nas nuvens, garantida pelo Anhang dos Anhangs. É verdade que muitos alertam, faz tempo, para o risco do fim do mundo. Sábios falam em adiá-lo. Mas eu sei que é inútil. O mundo, como o conhecemos - os que fomos capazes de perceber e chegaram a tempo pra isso -  já acabou. Logo estaremos todos, como os escafandristas da composição buarqueana, recolhendo sobras, buscando reconstruir lembranças destroçadas, peças de um grande quebra-cabeça que não soubemos montar com o cuidado necessário.