As pessoas
reclamam a perda da liberdade, por terem que estar em suas próprias casas, nos
locais e com as pessoas que escolheram para compartilhar suas vidas. Estranho.
Será que só eu já não me sentia livre, antes do confinamento decretado? Só em mim a sensação do risco do
aprisionamento a um mal muito maior existia há muito tempo? Justo eu, que
arrisquei libertar-me de bens, de compromissos, de presenças e quase me exilei
espontaneamente?
Outro dia uma amiga me lembrou, ao telefone, que eu comentava há muito tempo que o mundo já tinha acabado. Que a vida à qual normalmente nos referimos não existia, fazia tempo. Essa sensação de estar vivendo um depois me acompanhava nos últimos anos, trazendo-me um olhar distante para tudo. O mal-estar, que as ruas encardidas e fedorentas da cidade me produziam, chegava à dor física ao ver pessoas vivendo como ratos de esgoto, no meio das praças, por onde passava o tempo todo, distraidamente, uma população satisfeita. Como conseguem uns e outros? – eu me perguntava, enquanto apressava o passo, tentando desviar meu olhar que se prendia, hipnotizado, na criança maltrapilha ao lado do mendigo bêbado que empurrava a mulher que o xingava, rindo, num esgar de deboche, para o PM que, alheio a tudo, falava ao celular, enquanto as baratas borbulhavam nos bueiros disputando com as ratazanas os restos da feira-livre e do supermercado fétido, que alardeava promoções de comida, deteriorada e conservada em formol, com que as pessoas lotavam carrinhos de compras, estufando o peito, mais ou menos ostensivamente, de acordo com a quantidade arrebanhada, paga com cartões de crédito cujos limites são forma de identificação maior que os sobrenomes.
Os
vendedores ambulantes, defendendo seu direito ao trabalho sem horário, aparentemente
sem patrão e que lhes garanta um rendimento mínimo, já formavam um cenário
móvel e sonoro para o enorme pandemônio armado. O metrô vomitava gentes que se
atropelavam na urgência de chegar à superfície e continuar enlouquecidamente
sua marcha para um futuro que já não havia. Mas seria possível que só eu enxergasse
tudo isso? Só o meu coração doía a ponto de me roubar a inspiração, o apetite,
a libido, a paciência, a saúde? Como seria possível me conectar com as flores
das bancas multicoloridas, se elas já estavam misturadas, como se fossem da
mesma espécie, a grosseiras peças de plástico e fossem oferecidas por
vendedores que comiam a mesma quentinha engordurada que matava a fome de tanta
gente, enquanto diziam o preço, embalavam as plantas e recebiam o dinheiro,
mastigando apressadamente a comida e todo o lirismo perdido da possibilidade de
ser um florista?
Os pivetes,
às dezenas por todo canto, davam encontrão em quem podiam e levavam-lhe alguma
coisa que trocariam por qualquer entorpecedor de realidade. Como censurá-los?
Quantos cafés eu mesma precisava tomar por dia para conseguir manter meus olhos
abertos e minha mente afiada? Quantas vezes, ainda que sentindo-me enfraquecida
pela fome, meu paladar não despertava, bloqueado pelos cheiros de uma
infinidade de restaurantes, lanchonetes, barraquinhas de pastel, de churros, de
tapioca ou pipoca profanadas por queijo derretido fedido, das frutas e legumes
que sobravam das feiras, tudo temperado pelo odor inconfundível de urina,
fezes, pontas de cigarro esmagadas no chão, embebidas no caldo preto da chuva
acumulada, escarro, peças de roupas imundas abandonadas, largadas pelo caminho!
Só eu percebia que o mundo já tinha acabado e estávamos mortos-vivos perambulando num
limbo, na periferia do inferno? Só eu me senti agredida por um mesmo banco manter
duas agências lado-a-lado, com atendimento diferenciado, uma perfumada desde a
calçada, higienizada, oferecendo cafezinho, brindes e crédito imediato,
enquanto na outra os clientes precisavam se amontar, esperar nas filas,
implorar por um empréstimo, pagar juros mais altos? Só para mim as notícias
tenebrosas foram se tornando tão inverossímeis, já que não provocavam nenhum
movimento de transformação nos ouvintes? Só eu passei a ter horror de novelas,
programas humorísticos ou até músicas que vinham (há décadas!) cultivando
hipocrisia, crueldade, desrespeito, preconceitos, como se fossem simples
entretenimento? Só pra mim as infinitas entrevistas passaram a causar
desconforto, porque não inspiravam confiança?
Os amigos e
até parentes achavam que eu exagerava. Podia-se (e acreditam que ainda possam) –
eles diziam - parar o carro, descer no estacionamento do teatro, do cinema, do
restaurante, do shopping, sem precisar entrar em contato com tudo isso que pode
vir a incomodar. Podia-se (e acreditam que ainda possam) dar alguma ajuda a um
e a outro carente que se encontre (e aí inclui-se os atores mambembes), prestigiar
artistas (de sucesso, é claro, de preferência celebridades), participar de um
movimento de benemerência e depois beber alguns drinques, fumar uns, tomar um
tranquilizante ou um antidepressivo e aplacar o mal estar, dando prosseguimento
aos negócios, àquilo que ainda chamam de
relações, ao projeto de êxito que foram treinados a construir.
Só a mim,
provavelmente, ocorreu que as comemorações em família tinham perdido o sentido,
se o que contava não era mais o encontro e os afetos compartilhados (fáceis ou
difíceis), mas que sempre se esperava criar ali, um clima de excitação sem fim
e uma encenação de felicidade, facilmente substituída, ininterruptamente,
durante todo o ano, pelos agrupamentos com amigos, que passaram a ser todos os
que se pode juntar: nas redes sociais, nos incontáveis almoços, jantares,
festas, nas viagens organizadas coletivamente... Só eu via que tudo passou a
ser uma exibição sem fim? Exercício inconsciente de parecer ser, ao invés de
ser. Independente da classe social, o importante é o que pensa o outro. O
quanto se pode despertar sua inveja, chamada, erroneamente, de admiração. Não
importa se é pela beleza (a própria ou do parceiro), pelo desempenho profissional ou social, por ter
mais charme, pelos filhos parecerem herdeiros da esperteza que inclui a
valorização do ter sobre o ser, o que parece contar é o quanto a torcida grita
pelo gol, mesmo que o jogador esteja exausto e nem torça, de coração, pelo time
em que joga.
Acordei, após
o apocalipse, faz tempo. E passei a vagar, perdida nos dias que vieram depois.
Sim, tentei evitar. Antes, recolhi-me no campo e tentei falar metaforicamente
através dos mitos. Busquei as Belas Palavras, como dizem os Guarani. Mas até
esse movimento passou a ser capturado, para ser colocado no lugar das
excentricidades. Recatei-me, para não desonrar a herança ancestral. Esta perdurará eternamente nas nuvens, garantida pelo Anhang dos Anhangs. É verdade
que muitos alertam, faz tempo, para o risco do fim do mundo. Sábios falam em
adiá-lo. Mas eu sei que é inútil. O mundo, como o conhecemos - os que fomos capazes de perceber e chegaram a tempo pra isso - já acabou. Logo
estaremos todos, como os escafandristas da composição buarqueana, recolhendo sobras, buscando reconstruir lembranças destroçadas, peças de um grande
quebra-cabeça que não soubemos montar com o cuidado necessário.
Perfeito querida Inez! Saudades
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirGrata.
ExcluirTambém por suas reflexões que motivaram a parte II.
ExcluirEu também percebia um pouco, talvez um quase nada. Nas suas palavras fui compreendendo que percebia pq muitas coisas que vc descreve eu sentia. Como te falei, acho um privilégio estar viva neste momento da humanidade. Estranho, né? Mas acho que para alguns poucos escafandristas (Não acho que este momento ainda vai chegar. Já estamos nele) que se dispõe de fato a catar os ossos em meio à lama podre possamos salvar o que temos de diamante e construir outro tempo/espaço da humanidade...privilégio de viver tanta profundidade neste tempo de desconstrução/destruição tão profundo, tão duro, tão primitivo, com tanta força...que projeta o que virá para além do tempo que estaremos vivos para ver. Que joga a perspectiva para esse tempo/espaço infinito para frente e para trás nos remetendo para quando não existirmos como indivíduos (ego) mas como humanidade,se ela (A humanidade) sobreviver, ou como força/natureza configuradas em outras formas. Vixe, escrevi muito...nem sei o que estou escrevendo direito. Obrigada, Inez. Texto necessário..aguardando as outras partes.
ResponderExcluirEu é que agradeço. Aí vai a parte II.
Excluir...Nao se afobe, não, que nada é pra já... Muito lindo e se registro seu. Tão seu! Imagens fortes do seu olhar sensível e atento à dor escancarada nas ruas, na sala de visita da família,,, Te entendo muito e mesmo sabendo pouco de você, te descubro muito próxima, embora longe. Continue escrevendo. Quero continuar te lendo.
ResponderExcluirMuito grata, Claudia. Saber do eco e da afinidade faz com que as palavras fiquem mais fortalecidas.
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