domingo, 5 de dezembro de 2021

 

Ruta

 

PRIMEIROS PASSOS

Nunca fui uma desportista. Durante minha vida, exercitei muito mais o cérebro que os braços e as pernas. Só o que impediu de vir a me tornar uma sedentária assumida foi meu prazer em caminhar e, desde que deixei de guiar automóveis, sempre que possível, meus pés se tornaram meu meio de transporte preferido. Principalmente em lugares que não conheço, escolho ir a pé, de um espaço a outro, aprendendo, assim, muito mais detalhadamente os caminhos, ao mesmo tempo em que observo as pessoas e todo o ambiente a minha volta. Sinto um prazer imenso, durante essas excursões!

Quando morei por uma longa temporada em Torquay, na Inglaterra, saía depois do almoço a caminhar pelas escarpas à beira-mar, subindo pelas ladeiras sem fim daquela linda cidade vitoriana, até me perder e só re-encontrar o caminho de casa, já à noitinha. Sabendo que Clarice Lispector vivera ali, muitos anos antes, exatamente pelo mesmo intervalo de tempo que eu (6 meses), pus-me, um dia, a acompanhar um roteiro que fantasiei que ela houvesse feito. Caminhamos assim, juntas, e eu a ouvia dizendo sobre o tédio, as perplexidades e hesitações que vivera naquele período. Não foi uma caminhada propriamente alegre, mas me aproximou mais dela, reforçando suas palavras, escritas na época em que estivera naquele litoral. A cada passo, sentia uma emoção grande, difícil de descrever, pela afinidade profunda com seu sofrimento emoldurado, de forma contrastante, por uma natureza pródiga, de beleza invulgar…

 







O tempo passou e eu continuei minha vida nômade.

Morando em Portugal, há três anos, tive uma aula muito especial, no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, onde o palestrante, um professor da Universidade de Barcelona, apresentou parte de seu projeto pedagógico de doutorado, sobre o caminhar. Sua fala totalmente despretensiosa, autêntica e, para mim, cativante, levou-me a participar ativamente da aula, fazendo considerações e até descrevendo certas experiências minhas, com as andanças.

Sim, houve um tempo em que morando no bairro do Flamengo (Rio de Janeiro), caminhava diariamente pela pista de pedestres da praia, com um gravador pendurado ao pescoço, que registrava o ruído de meus passos e a narrativa oral que eu ia fazendo, de meus pensamentos aleatórios. Chamei de Andanças aquele arquivo, que certamente mantenho guardado em alguma gavetinha deste baú eletrônico.

O fato é que, naquele dia, em Portugal, ao final da palestra do professor visitante, ao eu ir cumprimentá-lo, sabendo que minha dissertação de mestrado seria uma autobiografia sobre meu processo de formação como educadora, ele, muito provavelmente por gentileza apenas, me sugeriu enviar-lhe o texto, quando estivesse pronto.

Perto do final do curso, candidatei-me a uma bolsa Erasmus para um estágio na Universidade de Barcelona. O resultado positivo do processo seletivo saiu exatamente na véspera da paralisação das aulas, tanto em Portugal, quanto na Espanha, em consequência da Pandemia de Covid. Junto com todos os projetos que fomos todos obrigados a manter em suspenso, ficou o sonho acalentado, desde a juventude, de viver a experiência de uma bolsa de estudos em país estrangeiro.

Meses depois, minha defesa da dissertação foi realizada à distância e, embora, até então, eu não planejasse cursar o doutorado, exatamente pelo prazer que me deu a boa receptividade com que meu trabalho foi acolhido e o interesse dos arguidores pela minha escrita, passei a considerar a possibilidade de continuar os estudos. Logo em seguida, me dei conta de que, mantendo-me na universidade, teria ainda a possibilidade, de viver a experiência de ser uma bolsista Erasmus.

 

O PONTO DE PARTIDA

Foi assim que, em 1º de outubro deste ano - 2021 - mesmo sem estarmos ainda totalmente livres do flagelo da pandemia, cheguei a Barcelona. Tivera uma torção de tornozelo uma semana antes da viagem, mas não esmoreci. Claudicante, aos 73 anos, instalada em uma residência internacional para estudantes universitários, eu me dispus a receber o que a vida me traria de desafios, encontros, descobertas e principalmente aprendizagens. Infelizmente, a proposta de ser uma aprendiz do processo pedagógico através do caminhar se tornou inviável, porque o programa não estava sendo levado adiante em tempos pandêmicos, em que a exigência dos cuidados sanitários não permitem deslocamentos de grupos de alunos. Mesmo assim, o professor Jordi Garcia Farrero, o mestre-caminhante, me acolheu como orientador do estágio e foi-me abrindo oportunidades de participação em suas aulas, em seus grupos de leitura, em seminários, em um Congresso Internacional sobre a Educação e o Mar, que acontecerá no próximo ano. Até que, um dia, ele me trouxe o convite para um Colóquio Internacional em homenagem a Walter Benjamin, que aconteceria em Girona, uma bela cidade medieval, próxima a Barcelona. Tratava-se de um colóquio sobre História e Ficção, com enfoque na memória trazida pelas narrativas sobre o passado. Este encontro se repete a cada ano, buscando dar continuidade às preciosas reflexões desenvolvidas por aquele pensador. Acontece na Faculdade de Letras de Girona, sob o patrocínio do Museu Memorial do Exílio, do Memorial Democrático e da Cátedra Walter Benjamin, Memória e Exílio da Universidade de Girona.



 


Mesmo sem ser uma grande conhecedora da obra de Walter Benjamin, tenho por ela profundo interesse e logo me propus a participar do evento. Além das conferências que reuniriam grandes escritores e professores universitários, o programa previa uma segunda parte, em Portbou, a cidade costeira onde Walter Benjamin morreu. Para ali foi planejado, além de cerimônias no Memorial feito em sua homenagem, apresentações artísticas e uma rota a pé desde a cidade francesa de Banyuls-sur-mer, até Portbou, refazendo o percurso feito por Walter Benjamin, em sua saga ao cruzar, caminhando, a fronteira entre França e Espanha, no intento de chegar em seguida à Portugal e, de lá, poder, enfim, viajar para os Estados Unidos, para onde já tinha um visto garantido, escapando, desse modo, da perseguição nazista.

Esta história, que eu conhecia por alto, ganhou novos contornos, para mim, à medida em que a data do Colóquio foi se aproximando… À recordação da morte trágica de Walter Benjamin, em Portbou (narrada oficialmente como um suicídio), acrescentaram-se reflexões que eu já vinha intensificando, nesse período de estudos em Barcelona, sobre o destino dos grandes pensadores, que ousam se posicionar e resistir, formulando proposições de transformação da situação de miséria moral em que a espécie humana é capaz de se afundar. Certamente impossível alcançar total compreensão para o fato de a história registrar que, no dia imediatamente posterior ao fim da vida de Walter Benjamin, a passagem dos refugiados foi liberada. Ironia do destino, apenas? E, exatamente pelo inalcançável do sentido de toda essa tragédia, eu senti que precisava conhecer Portbou, precisava trilhar o mesmo caminho que ele fizera, não como homenagem exatamente, mas como parceria solidária por sua imensa dor.

Foi com esse espírito que cheguei de trem a Portbou, na sexta-feira, dia 19 de novembro à noite, após as atividades do Colóquio em Girona. Viajei sozinha e me encontrei pouco depois das 19h, em uma cidadezinha escura, praticamente deserta. Caminhando para encontrar o hostal onde passaria a noite, cruzei com menos de meia dúzia de pessoas, mas parecia que a noite, de uma lua cheia magnífica, estava repleta das sombras. Essas percepções visuais ilusórias, fugidias e inquietantes, eram para mim como restos, cicatrizes  de acontecimentos que nunca se apagarão e que acabaram por dar àquele lugar um destaque, nunca antes imaginado, certamente.





De Portbou, me ficou, enevoada, a lembrança da pequena e bucólica enseada, vista ao luar e ao amanhecer, antes da saída para cumprir a rota. É um lugar ao qual dificilmente voltarei, mas que precisava conhecer. A caminhada que fiz, me assegura que assim é.



 

A ROTA

Desde criança, aprendi na escola que os viajantes, ao se perderem, devem procurar localizar o Norte; que para se orientarem podem usar uma bússola e, na falta dela, podem se orientar pelo sol. Em classe, nos mostravam como nos posicionar em relação à direção onde o sol nasce e esticando ambos braços aos lados do corpo, traçar o cruzamento orientador. O Norte estaria sempre a nossa frente. Não é à toa que se usa a metáfora de se nortear, com o significado de buscar o sentido da vida. A verdade é que nunca me foi necessário, geograficamente, usar o expediente do posicionamento corporal. Tampouco tive uma bússola, embora o instrumento me encante, especialmente pela ideia da imantação. Mas, para a única casa que possuí, comprei aquele tradicional galo de metal, posto sobre os pontos cardeais, que se coloca no telhado, marcando a posição em que o terreno está. Era alguma coisa que me parecia completar a dignidade daquele sítio e me garantir a indicação de meu norte.




Pois, acostumada que sou a andanças em bosques, habituada a conversas com moradores de diferentes regiões rurais, tanto no Brasil, quanto em Portugal, nunca antes ouvira falar que pela posição do surgimento de certos musgos, nos caules das árvores, era possível localizar o ponto Norte, mesmo e especialmente, quando não se vê o sol. Essa lição, a primeira das inúmeras que ouvi no trajeto pelas montanhas, entre Banyuls-sur-mer e Portbou, me fez identificar o verdadeiro guia daquele meu percurso: Miquel Serrano Jiménez.

Miquel é historiador e conservador do Museu do Exílio, de La Jonguera. Um dos organizadores do evento, esteve, nos dois primeiros dias, diligentemente, organizando detalhes, que incluíam desde a anotação de presenças, a recepção de convidados, até a produção das fotografias e certamente muito mais, que escapou a minha observação. Para minha surpresa, lá estava ele, de manhã cedinho, em Portbou, aguardando a formação do grupo, para nos acompanhar durante a caminhada.

É verdade que, tendo me informado sobre as condições do terreno que trilharíamos, eu senti receio de não conseguir cumprir a meta. No entanto, felizmente, todos a quem me dirigi foram otimistas e me entusiasmaram a ir. Certamente por delicadeza, agora eu sei. De fato, aquela era uma missão quase impossível para mim, posso reconhecer. Acontece, porém, que desde o início, logo que, ao fazer uma pequena parada para tirar a primeira foto de registro da marca inicial do trajeto, eu me distanciei do grupo e quis correr para segui-lo, Miquel se acercou de mim e me tranquilizou, dizendo que eu não me preocupasse, que ele estaria a meu lado, acompanhando meu ritmo. E assim aconteceu, durante os 15 km que viriam a seguir, em subidas íngremes, em descidas bastante perigosas, transpondo obstáculos formados por pedras altas e pontiagudas, que eram preciso superar para seguir adiante…





Esse poderia ser apenas o relato de uma aventura vivida por uma anciã, no mínimo pretensiosa, que, decide acompanhar um grupo de mais de duas dezenas de caminhantes tenazes, verdadeiros globetrotters, seguidores obstinados da rota, olhando em frente (e, certamente, para o solo), sem se permitir maiores contemplações, parando apenas em momentos marcados para pequenos lanches, dentro da previsão de um tempo determinado para o cumprimento do programa. Mas o que me aconteceria durante aquele transcurso foi muito além desse desafio, que já teria sido, por si só, um acontecimento.

Logo que percebeu que eu parava de tempos em tempos para olhar a paisagem, Miquel começou a me contar sobre aquelas paragens. Assim, aprendi que ele é oriundo daquela região, de uma localidade que fica atrás de uma das enormes montanhas que estavam a nossa frente. Por conta disso, foi me dando informações sobre as vindimas que ladeavam o caminho, explicando-me como se fazem as podas, em que época do ano e de que forma, como os ramos são recolhidos para transplante, o que logo pude constatar in loco, ao ver um casal se dedicando justamente a esse trabalho, em um ponto mais alto do terreno. Pudemos saudá-los e seguir adiante, já entretidos numa conversa amigável, que mesclava os conhecimentos que ele ia me passando com informações sobre nossas vidas. Assim fiquei sabendo que ele tem a idade de minha filha mais nova, que já tem três filhos, que tem o mesmo nome de um antepassado seu, embora ao batizá-lo, não houvesse a intenção deliberada de repetição, por parte de seus pais. Em retribuição, contei-lhe também a história de meu nome, minha quase ressurreição no momento de nascer, razão de terem me chamado Maria. E, desde que me recebera no Colóquio, era por Maria que Miquel me chamava.


 

Nessas alturas, já ofegante pelo esforço da subida íngreme, eu ia parando mais amiúde, querendo tirar fotos para lembrar, e também para poder compartilhar com meus filhos e netos aquela experiência. Sem demonstrar qualquer espanto, preocupação ou aborrecimento, Miquel estacava solícito a meu lado, aguardando-me. Assim, encontramos os sobreiros - as árvores de cuja casca se extrai a cortiça – e ele me mostrou a diferença entre vários tipos da mesma espécie do vegetal. Lembrei-me do ensinamento psicanalítico que compara o falso self ao excesso da cortiça no tronco da árvore, acabando por matar a seiva do vegetal (o verdadeiro self). Ele, então, me explicou como se faz a retirada da cortiça, por que razão e em que época. Contou-me que, quando menino, se dedicou a essa tarefa acompanhando o trabalho do avó, que lhe transmitiu uma lição inesquecível: que a delicadeza necessária para retirar a cortiça, sem magoar o caule da árvore, pode ser comparada àquela que um homem deve ter, ao despir uma mulher.

Nunca poderia imaginar que alguma comparação pudesse ser igualada ou até superar a que me ensinara meu mestre Coimbra, sobre os perigos da máscara social se prender ao nosso verdadeiro self e sufocá-lo. Mais tarde, lembrando esse momento da conversa com Miquel, senti imenso contentamento por já ser idosa o suficiente para que aquele moço bonito pudesse me contar com tamanha naturalidade aquela história, sem se preocupar que eu a pudesse julgar inadequada. A transmissão cultural tem caminhos misteriosos: três gerações intercambiando conhecimentos e sabedoria, que tento passar adiante aqui, para alcançar maior dimensão ainda. Então, prosseguindo pelo tema do cuidado, falamos das cicatrizes, das feridas que nunca fecham, das marcas dos sofrimentos. Nesse ponto do trajeto, já nos reconhecíamos como velhos amigos. Em alguns momentos eu lembrava de Walter Benjamin, pensando em como deve ter sido difícil para ele fazer, por ali, em trajeto tão árduo, uma fuga absurda, gerada por uma perseguição genocida. Quantos ferimentos quase impossíveis de curar, produzem as guerras! Quantas cicatrizes deformadoras acumulam-se na vida dos seres humanos!  

Algumas vezes Miquel me dava informações, detalhes daquela história fatídica, mas logo voltávamos a falar sobre o que nos cercava. Foi assim que ele me mostrou os líquens, e, em seguida, as viçosas samambaias, me explicando como nasciam, como se reproduziam com facilidade aqui e ali, sementes levadas pelo vento…


Aí, eu parava e olhava para trás e ele se lembrava de alguém, a que ele acompanhou pela mesma travessia uma vez, que fazia a caminhada de costas, para ir vendo o percurso já cumprido, enquanto andava. E tínhamos a oportunidade de pensar, juntos, em como isto era importante na vida: avaliar o já vivido, enquanto se segue adiante.

Quando já estávamos bastante distantes do grupo, por conta de meu caminhar mais lento, apareceu, de repente, um outro cavalheiro: Pau. Voltara espontaneamente para se juntar a nós, na retaguarda, e se propôs a ser, também, meu auxiliar. Passou a caminhar na minha frente, oferecendo-me a mão, que mantinha todo o tempo estendida em minha direção, pelas suas costas. Miquel seguiu atrás de mim, como faz o lobo-chefe, na matilha. Contei-lhes o que sabia sobre os lobos e sua organização social exemplar. Claro que, pouco acostumada a tanta gentileza, me senti constrangida, à princípio. Contudo, a conversa que já vínhamos mantendo se expandiu e passou a incluir o Pau e, a essa altura, já nos sentíamos como três mosqueteiros. 




Miquel nos mostrava, a horas tantas, os resíduos das fezes dos pequenos animais roedores, sobre as pedras do caminho. Ensinava-me como era possível identificar o tipo de animal, pelos restos de sementes que sua digestão deixava intactos. Nesse ponto me lembrei do mito indígena brasileiro “O jabuti e a anta” e perguntei se queriam ouvi-lo. Eles se interessaram imediatamente, parecendo não ter mesmo nenhuma pressa de alcançar o restante do grupo. Nos retivemos por alguns momentos à beira do caminho e, assim, pude lhes contar a história, trazendo as principais considerações, que sempre me ocorrem, ao final. Tive o prazer de verificar seu vivo interesse por aqueles novos conhecimentos e desejei que Miquel pudesse compartilhá-los com seus filhos. Prometi-lhe enviar-lhe um livro meu, sobre mitos indígenas, logo que esteja de volta a Portugal. E com que honra o farei!

Ao relatar tudo isso, me dou conta de algo extraordinário: os meus dois parceiros falam catalão e nos comunicávamos perfeitamente, mesmo que eu só pudesse me expressar usando um misto de português/espanhol/catalão, que normalmente as pessoas em Barcelona parecem não entender bem, impossibilitando-me manter com elas conversas mais longas. E lá estávamos nós, na linguagem universal do afeto, sem fronteiras, sem defesas, sem perder nenhum momento de comunicação!

Foi ainda bastante longo o caminho entre as montanhas. Víamos, ao longe, as gigantescas torres de distribuição da eletricidade, cruzando espaços incomensuráveis.  Lembrei-me dos moinhos eólicos de Torres Vedras, em Portugal, meus guerreiros simbólicos e, ao mesmo tempo, mestres orientadores de um tipo particular de meditação. Vieram novas e oportunas considerações sobre o aproveitamento dos recursos da Natureza, generosa e sábia. Subimos ainda muito mais, até que começasse a descida, anunciada por Miquel como bem mais perigosa. De fato, algumas vezes era realmente assustadora! Verdadeiros tobogãs abissais, de pedras lascadas, estendiam-se a nosso lado, fazendo com que nossa atenção a cada passo tivesse que ser mais e mais aguçada. Um pisar em falso parecia poderia ser fatal. Mas meus guardiões eram fortes, seguros e haviam se aliado a meu propósito. Houve um momento em que escorreguei e poderia ter tido uma queda. Mas estava tão bem amparada, que simplesmente deixei-me deslizar sobre a pedra, onde pisara perdendo o equilíbrio, até o solo, repetindo, para acalmar sua visível apreensão, pra lá de natural:

- No pasa nada! – No pasa nada! Tranquilo!

E rimos juntos, porque, afinal, passado o susto, foi mesmo divertido.

De repente, surgiu mais um dos participantes do grupo, aparentemente curioso em saber o que nos retardava, e contou-nos de alguém tivera vertigens durante a escalada. Depois, quando já estávamos bem adiante, onde a vegetação mais fechada começa a cercar o caminho, vieram outros dois – uma mulher e um outro homem. Paramos junto a uma fonte natural, onde Walter Benjamin também estivera. Eles comeram seu lanche. Eu preferi não ingerir nada, além de pequeninos goles de água e muito ar puro. Sentia-me forte. O cansaço era parte do bem-estar.



 

Cumprimos ainda boa estirada, até chegar ao topo, à fronteira, o cume do itinerário. Cristina, a mulher jovem que se juntara a nós, conversava comigo, com simpatia e familiaridade. Fotografei meus dois anjos-da-guarda, antes de passarmos pela cerca, que delimita os terrenos fronteiriços, como contenção dos animais. Lá do alto, 360º de visão, num dia de céu azul esplendoroso! Meu coração exultava! Um dos parceiros que chegara nesse final da linha, sugeriu que Miquel poderia pedir um carro do Departamento de Turismo, para me levar pela estrada, até Portbou. Miquel, sempre solícito, me consultou e eu lhe disse que só aceitaria a ofertam se isso fosse melhor para eles, se eu os estivesse entravando. Ele disse que de forma alguma e, juntos, uns mais a frente outros mais atrás, agora em grupo de 6, descemos o longo caminho por estrada de chão, que leva a Portbou.



 

Aí estão Miquel e Pau, guardiões, parceiros e amigos, com que a Ruta me permitiu encontrar.


Eu e Pau tivemos a oportunidade de falar, então, sobre nossos trabalhos. Ele me pediu que contasse sobre a escola que eu criei, no passado. Depois de me ouvir, contou-me sobre a atividade que vem desenvolvendo com o grupo aberto que ele chama de pessoas pedintes, mas que, tratou de esclarecer, não são mendigos, no sentido literal do termo. São pessoas diversas que elegem outras para garantir sua sobrevivência, o atendimento a suas necessidades, quaisquer que sejam (materiais, psicológicas, espirituais), pondo-se em situação de incapacidade. Pediu-me uma sugestão para nomear esse trabalho, que não reconhece nem com características de escola, nem de centro de qualquer espécie. Bom desafio! Pensar a troca de cuidados entre seres humanos, sem a noção de centralização. Sigo pensando, desde então…

Na última etapa da rota, a pressa era minha. Lembrei-me que precisava pegar minha mala no Hostal, às 16h. Mesmo com as pernas sinalizando o extremo esforço que eu fizera, tratei de intensificar a marcha e, desse modo, eu e Miquel entramos na frente daquele pequeno grupo, pelas ruas de Portbou.

Logo depois de recuperar meus pertences, fui encontrá-los na enseada. Estavam confraternizando e, convidada, eu brindei com eles o nosso encontro inesquecível e o sucesso da empreitada. Agradeci sincera e efusivamente a Miquel e a Pau, por cada momento compartilhado nas montanhas. Pau fez questão de deixar comigo o livro Angelus Novus de Walter Benjamin, recomendando-me que lesse o capítulo Destino y Carácter. Trocamos contato, de forma a podermos voltar a falar sobre isso.

Não fui à homenagem no Cemitério, onde há um túmulo simbólico de Walter Benjamin, já que ninguém sabe, ao certo, onde ele foi enterrado, no mesmo dia de sua morte. Nem quis ir ao Memorial, tampouco. Eu estivera com o melhor de Walter Benjamin, nas últimas horas e queria guardar comigo a expressão viva que eu obtivera de seus ensinamentos sobre memória, história, linguagem, em tudo que acabava de viver.

No trem, partindo de Portbou de volta a Barcelona, percebi ter dado sentido ao projeto de estágio sobre caminhada pedagógica, de que, um dia, resolvi fazer parte.

Vida que segue…

 

                                                                                                   M.I.E.S.














domingo, 5 de setembro de 2021

EVOCAÇÃO

 

EVOCAÇÂO

Os povos indígenas, legítimos donos dessa terra, estão, há duas semanas, acampados em Brasília, à espera de que os senhores das leis decidam se vão, ou não vão, respeitar seu direito inalienável de viver nas regiões das quais são os únicos guardiões verdadeiros e capazes. Não há nenhum respeito pelo seu sacrifício em estar ali, expostas à enorme distância de seus territórios, à mercê de toda sorte de riscos, naquela cidade  inóspita. Os senhores das leis adiam a votação arbitrária a seu bel prazer, esperando, certamente, esvaziar a mobilização indígena.

600 mil pessoas já morreram de Covid-19 e muitas das que se infectaram e sobreviveram estão ainda sem solução para as sequelas gravíssimas que a doença lhes deixou. Os senhores das leis discutem, dia após dia, as barbaridades que vieram (e seguem) sendo executadas pelo governo federal e seus asseclas, mesmo que saibamos que nada poderá reverter o genocídio que vem sendo praticado por eles. Gasta-se tempo precioso e rios de dinheiro para julgar o que já seria condenável por princípio. E há quem se delicie com esse circo de horrores.

O desemprego, a fome, a miséria alastra-se pelo país, trazendo o prenúncio de um desespero que logo se abaterá sobre todos os que ainda mantêm um mínimo de dignidade. Por outro lado, enquanto o Brasil agoniza, muitos se alienam, vivendo como se tudo isso fosse natural ou inevitável.

Mas depois de amanhã deverá ser celebrado o Dia da Pátria. A criminalidade legalizada, a quem foi entregue o poder, pretende dar salvas sobre essa terra saqueada, ensanguentada, ultrajada, estuprada por mais de cinco séculos e golpeada de morte, agora. Querem pisotear compassada e solenemente, com coturnos militares polidos vigorosamente, a dor e o desalento do povo. Contam com a adesão de um fanatismo cego, que hipnotiza e imbeciliza tantos.

Nesse momento, há grande temor espalhado no ar, uma sensação de véspera, que já se urgencia há 7 anos. E existe, também, o desejo de vingar nossos mortos. Trucidados, envenenados, soterrados pela ganância, eles foram se tornando sombras, que nesse momento ganham força pela recordação, que os transforma em presença.

A Pátria tal como ensinada em nossa infância passada, abrigo de vida e criadora de caráteres dignos, era uma fantasia, percebemos, por fim. Por isso, será preciso recriar o significado desse termo, talvez transformá-lo. Necessário até, provavelmente, inventar uma nova bandeira,  inaugurar um tempo de novas utopias. No entanto, para que isso possa acontecer, precisamos olhar pra trás. Sim, a nosso frente estão os bárbaros, celebrando a morte com armas e mãos ensanguentadas. Mas, atrás de nós, estão nossos antepassados, nos ensinando o caminho de um poder infindo, que nasce do necessário reconhecimento de quem somos.

Irremediavelmente criados com almas miscigenadas, seguiremos errantes e desvalidos,  enquanto  não assumirmos o orgulho de sermos uma nação de seres humanos com um passado de vínculos profundos, gerados pela necessidade premente, que nos fez sobreviver à escravização, à submissão, a toda sorte de humilhações. Nossa herança mais remota é de um comprometimento profundo com a Vida e é ele que nos trouxe até aqui.

Muito mais do que um sentimento de pátria, é o direito de sermos livres e íntegros o que a memória mais remota da passagem dessa data precisa despertar em nós. Mas a autêntica liberdade é a de não sermos mais conduzidos como rebanho, nem mesmo instigados por provocações planejadas. Para podermos recuar, quando preciso, e surpreender, por trás, os inimigos que precisamos vencer.

Que venham os espíritos das grandes mães e pais indígenas, africanas e africanos, todos e todas que nos legaram seus colos, suas rezas, seus unguentos, seus conselhos, sua sabedoria, abrindo urgentemente, nesse momento sombrio, um caminho de percepção clara, que nos leve a alcançar a resolução desse enfrentamento!

                                                                                                               M.I.E.S. 

05/09/2021

domingo, 3 de janeiro de 2021

Um recorte de minha vida atravessada pela pandemia

 

Bem que, nos últimos dias,  eu desejei escrever um texto de celebração ao novo ano. Mas meu coração anda em câmara lenta, contrastando com meu acelerado ritmo pessoal. Um descompasso que denuncia: estou imensamente triste com tanto sofrimento a nosso redor.

A sensação que tenho é de que continuamos em 2020. Como se o tempo, que parece paralisado, nos mantivesse indefinidamente nesses dias cinzentos, que a pandemia inaugurou.

Reconheço, é verdade, que também surgiu um espaço para reflexões mais profundas, para quem se dispõe a esse mergulho, mais necessário do que nunca. E que ele nos traz dimensões outras, que vimos adiando e que vêm se abrindo, como portais que podemos transpor, em busca de mais sabedoria.

Imersa nesses pensamentos eu estava quando, sincronicamente, um artigo que escrevi em agosto passado, enquanto terminava minha dissertação de mestrado, foi publicado. É uma narrativa sobre a forma como a situação de exceção que estamos vivendo atravessou meu texto autobiográfico do trabalho acadêmico. Nesse artigo, faço considerações sobre as transformações pelas quais o mundo já vinha passando há alguns anos e de que, na emergência, fomos obrigados a encarar e suportar. Felizmente, meu olhar, embora extremamente realista, termina sempre por ser de esperança. 

Então, em lugar do texto que sonhei lhes enviar e que adio para o próximo ano, deixo, aqui, dois links: o do meu artigo e o da revista, como gratidão pela publicação. Quem se dispuser a ler, talvez encontre afinidades com meus pensares.   

E fica, também, meu desejo de que do tempo aparentemente invisível venha a construção de um presente mais pleno de consciência social e amorosidade.

 

https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/10465

 

https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/issue/current