Por bem amar
O amor encontrou minha casa arrombada e
destruída.
Passara por aqui a paixão. Chegara
repentinamente, iluminando com tanta intensidade o espaço, que foi cegando os
olhos de tudo.
Preencheu cada cantinho irreverentemente,
expulsando hesitações, temores, cuidados e ensaios.
Nada me parecia faltar, desde então. E o
próprio desejo já era satisfação, sem sequer ter sido expresso.
A beleza que a paixão produzia era tão
impregnante, que eu podia admirá-la, profundamente dentro e infinitamente fora,
a um só tempo.
Durou, até. Mas, num súbito, extinguiu-se e,
atrás de seu rastro, restou bem pouco.
Depois, reuni forças para acender o fogo.
Comecei a catar os cacos da louça quebrada,
as páginas dos escritos rasgados, evitando olhar meu rosto cansado, no espelho
espatifado.
Foi, então, que o amor entrou. Não por
convite. Foi o abandono que o chamou.
Quase em silêncio, pisando de mansinho, começou
a tecer seu manto: um quase imperceptível afago, um olhar mais demorado, uma
flor exposta num vidro vazio, uma semente a germinar.
E foi-se deixando ficar, mesmo quando parecia
não estar mais aqui.
Integrou-se no leito que acolhe, nas dobras
da roupa que aquece, na cadeira que apoia e na água que escorre, lava o corpo e
mata a sede.
Hoje, vive no silêncio e no canto de
pássaros, mesmo quando estes não vêm.
Colore o final da tarde e faz girar as pás
dos moinhos distantes, que o espalham, displicentemente, mundo afora...
Diariamente o amor abre e fecha a porta,
azeitando as dobradiças para que não ranjam e eu não me assuste.
Acolhe minhas inquietações, com placidez,
porque sabe que vão passar.
Quando veio, o amor aceitou que eu não
tivesse nada. Trouxe as mãos vazias e me alimentou de sonhos macios.
M.I.E.S.
01.11.19